Campeões da dignidade
O Campeonato do Mundo de Futebol terminou com a Alemanha a erguer o troféu. Os entendidos dizem que o sucesso foi justo e sustentam-no com a performance da selecção e a aposta germânica na formação de atletas, entre outras virtudes. Especialistas e comentadores garantiram ainda que o desfecho foi o esperado, recorrendo a uma máxima do futebol que assegura que todos jogam, mas no fim... ganha a Alemanha.
Entre as notícias a propósito do Campeonato do Mundo de Futebol, uma chamou-me a atenção: a Selecção da Argélia, ou melhor, os seus jogadores, terão decidido doar o prémio ganho pela inédita passagem aos oitavos-de-final às vítimas da agressão israelita na Faixa de Gaza.
A doação foi entretanto desmentida e há mesmo quem explique que se tratou de um boato, tornado viral nas redes sociais. Uma declaração do avançado Islam Slimani terá sido truncada, informam. Questionado sobre se os jogadores argelinos aceitariam os 10 mil dólares oferecidos por uma popular cantora nacional por cada golo marcado na competição, Slimani respondeu «nós não precisamos do seu dinheiro, doe a Gaza». Entre o dinheiro dos prémios e a oferta da cantora, gerou-se a confusão, esclarecem as mesmas fontes.
Segundo apurei, o destino dos prémios (já agora) ainda não foi esclarecido, no entanto, o facto é que Slimani solidarizou-se com os palestinianos de Gaza e expressou a consciência da equipa argelina face às carências que aqueles enfrentam. O que aliás não se estranha, uma vez que durante o desfile triunfal em Argel, onde os jogadores foram recebidos como heróis, a bandeira da Palestina foi colocada lado-a-lado com a do país.
A avolumar a confusão, foi igualmente atribuída a um outro jogador, e logo a um campeão do mundo, a garantia de que o prémio ganho se destinava igualmente à população da Faixa de Gaza. A promessa do alemão Mesut Özil, de ascendência turca, teria sido desencadeada após a morte de várias crianças palestinianas durante um bombardeamento israelita, uma das quais envergava uma camisola com o nome do craque enquanto jogava futebol, mas acabou igualmente desmentida.
Investigando a matéria, fiquei a saber que por estes dias também a cantora pop Rihanna e a multifacetada Selena Gomez foram obrigadas a esclarecer que as respectivas publicações nas redes sociais tinham como propósito defender a paz e não tomar partido por nenhum dos lados do «conflito israelo-palestiniano».
Dúvida pertinente
Perante tantas promessas, declarações e desmentidos, é impossível não questionar se aos crimes cometidos por Israel não se junta a repressão e criminalização dos que condenam a barbárie sionista. Fica a dúvida sobre se o que se passou com os futebolistas e as «celebridades» não tem a mesma raiz do despedimento da repórter da CNN, Diana Magnay, que numa rede social qualificou de «escória» os israelitas que viu festejarem os mísseis lançados sobre Gaza.
É global o impacto que tem a expressão pública de um posicionamento político por parte de uma estrela do futebol ou das «artes e espectáculos». Atente-se às consequências dos apelos e denúncias recentes do fundador dos Pink Floyd, Roger Waters, ou de Eddie Vedder, dos Pearl Jam, aos quais se atribui influência no cancelamento de espectáculos em Israel por parte de alguns colegas. Voltando ao futebol, lembremos o contributo para o repúdio do racismo dado pelo futebolista brasileiro, Daniel Alves, que durante uma partida de futebol, realizada a escassos dias do Campeonato do Mundo, comeu uma banana arremessada contra si da bancada de um estádio. Os vídeos de companheiros de profissão nos mesmos moldes correram mundo e mereceram destaque nos noticiários, combatendo a discriminação racial.
Na história sobejam os casos em que jogadores, treinadores e equipas tomaram partido de forma mais ou menos explícita. A democracia corintiana em plena ditadura brasileira, nos anos 80, ou o repúdio da agressão da NATO à Jugoslávia levada a campo pelos jogadores nos diversos campeonatos europeus, são apenas alguns exemplos que cito de memória.
Nenhum é comparável ao dos futebolistas soviéticos do Dínamo de Kiev, que durante a ocupação nazi da Ucrânia se juntaram sob outro emblema e bateram repetidamente as equipas formadas pelas hordas hitlerianas, entre 1941 e 1942. Todos, com excepção de dois, foram fuzilados ou morreram sob tortura por preferirem ganhar um jogo de futebol a vergarem-se ao fascismo. Creio, no entanto, que o seu exemplo de campeões da dignidade deixou sementes, incómodas para os que continuam a recorrer à guerra para esmagar os povos e a sua luta.