Lixos
Antes mesmo que alguma imprensa diária não desportiva no-lo tivesse informado, já a televisão nos havia dado conta, digamos assim, de protestos por parte de residentes numa das ruas do centro da capital: tratava-se do elevado número de cidadãos ditos «sem-abrigo» que ali se instalam, que ali pernoitam e que até que ali por vezes dão desabafo a necessidades mais ou menos imperiosas, tudo isto acrescendo a uma produção de lixo que pelos vistos será superior ao que é considerado normal. Entre os protestos destacam-se, ao que nos foi dito e é verosímil, os dos comerciantes ali estabelecidos, pois consideram que os «sem-abrigo» e os variados detritos por ali derramados e abandonados prejudicam o comércio afugentando a virtual clientela e sobretudo os turistas, fracção especialmente estimada e desejada. Pelo que da breve reportagem televisiva facilmente se concluiu, entre o lixo propriamente dito e os «sem-abrigo» ali instalados sobretudo à noite, mas muitas vezes também permanecentes durante parte do dia, há uma fundamental equivalência no plano da repugnância que inspiram aos que por ali passam, lavados e eventualmente perfumados, pelo que não será excessivo reuni-los numa comum categoria de lixo, independentemente da condição humana que o lixo clássico nunca teve e do lixo constituído por seres a quem foi reconhecido em tempos o pleno estatuto de gente e agora em larga medida o perdeu. Afinal, tudo é lixo que incomoda e prejudica quem não o é. Pelo que são reclamadas providências.
Um país cheio
Trata-se, pois, de proibir o lixo: removendo-o para a lixeira final no que diz respeito ao lixo mais tradicional e, pelo menos tendencialmente, proibindo o lixo que em tempos foi humano, em dada altura perdeu o lugar de pernoita e provavelmente o de alimentação, desceu à categoria de mendicante, aproximada ou equivalente. Recorde-se que esta medida, a da proibição sugerida e sem dúvida desejada, tem antecedentes ilustres: já o doutor Salazar, em vários aspectos percursor do actual Governo, em tempos proibiu a indecorosa exibição do «pé descalço», indiscreto sinal de pobreza que de modo nenhum convinha deixar exibir perante visitantes estrangeiros e mesmo perante eventuais consciências portuguesas mais sensíveis. Dir-se-á que há outras formas de combater e por fim eliminar o fenómeno social constituído pelos «sem-abrigo» e pelo lixo que lhe é adjacente: pois há, mas custam mais caro que a simples emissão de uma lei, acontecendo que «não há dinheiro!», como muito ouvimos dizer aos sábios que vêm à televisão explicar-nos os sólidos fundamentos do mau passadio a que o povo português foi condenado. Ora, dizem-nos que os «sem-abrigo» são mais de quatro mil em todo o território nacional de que, de resto, muito nos orgulhamos, estando concentrados sobretudo nas nossas belas cidades: imagine-se o insustentável esforço financeiro que significaria dar a cada uma dessas criaturas um trabalho remunerado, um tecto de custo acessível e, sobretudo, um projecto de vida humanizado! Trata-se, é claro, de um impraticável projecto de solução, mais vale mesmo proibir, remover. Por outras palavras: manter esse lixo nas condições actuais, mas escondê-lo. Afinal, sabemos que cidadãos «sem-abrigo» existem por essa União Europeia fora, e aliás não só, pois também os há em diversos lugares das sociedades desenvolvidas e muito atentas ao respeito pelos direitos humanos, pelo que decerto bastará fazer o bastante para que não incomodem. É aliás o que se faz com outros fenómenos inconvenientes: as listas de desempregados, prudentemente expurgadas de uns milhares por eficazes critérios ditos administrativos, as madrugadoras dezenas de doentes diariamente à porta dos centros de saúde sem que rebente o escândalo mediático que bem se justificaria, os velhos expulsos dos chamados «lares» porque os parentes já não podem pagar-lhes a estada e sem que se saiba quantos são, os que perderam o tecto na sequência de uma iníqua «lei das rendas» que todos parecem ter esquecido, coisas assim. Afinal, tudo isso resulta em lixo de diferentes espécies. E está o país cheio dele.