O herói colectivo
Estivemos há dias na Casa do Alentejo a apresentar o livro: «A CUF no Barreiro, Realidades, Mitos e Contradições», e vieram-nos à memória vincadas recordações da juventude, dos animados bailaricos naquelas salas lindíssimas, ao som notável da novel guitarra elétrica.
Esse tempo fantástico dos anos 60, coincidia com o despertar de um profundo sentimento de insatisfação e revolta, ligado à clarificação da consciência social e política, contra a opressão cinzenta na Escola e na Cidade e, contra a vida familiar ruim, subsistindo do trabalho duro e super explorado nas grandes fábricas do monopólio CUF que produziam muita riqueza, sobretudo apropriada por uns poucos.
De tudo isto fala o livro que levou a Lisboa uma parte da história do Barreiro Operário e Industrial, integrante significativo da história do capitalismo fascista que sugou a pátria portuguesa durante quase meio século e que hoje, sob outras formas (ou não!...), continua a exauri-la.
Este trabalho surge num contexto de regressão civilizacional e certamente ajudará a refletir sobre as razões do retrocesso contemporâneo, quando de várias origens convergem diferentes iniciativas de branqueamento do regime fascista e das suas figuras de proa.
Não por acaso, realizou-se recentemente no Barreiro uma homenagem ao fundador da CUF – Alfredo da Silva – valorizando a sua «obra social» e enaltecendo o seu «empreendedorismo».
Como questiona Vitor Ranita no seu magnífico «Obreiros da Nossa História – Os Metalúrgicos», «… será cientificamente consistente valorizar os aspetos marginais das situações históricas, sem os contextualizar ou referir-lhes as contradições mais marcantes?»
A «higienização» da imagem do regime de ditadura e dos seus chefes – Alfredo da Silva foi um expoente maior, «patrão dos patrões!» – e, voltamos a parafrasear Ranita, «…a enfatização de aspetos secundários da sua política e o aproveitamento acrítico da sua oratória propagandística [...] conduz à desvalorização dos objetivos e dos efeitos da luta social daquele período, na qual participaram sucessivas gerações de trabalhadores».
Está por fazer a avaliação rigorosa dos milhares de barreirenses de nascimento ou opção, perseguidos e encarcerados nas masmorras políticas do regime, na maioria sujeitos a torturas e sevícias.
Quantos deles não trabalhavam na CUF, «usufruindo» de algumas benesses paternalistas? Mandando os filhos à Colónia de Férias, a ver o mar pela primeira vez? Quantos não terão sido obrigados, pelo pão de cada dia, a filiar-se na Legião Portuguesa e/ou a envergar a farda da Mocidade aos filhos?
Muitos lutaram em unidade, ao longo de decénios, contra a miséria, a exploração e a opressão, por melhores condições de trabalho e de vida.
É dessa luta de homens e mulheres das fábricas, dos serviços, dos campos e das pescas; de estudantes e docentes, de escritores e artistas; de outros intelectuais, de padres e militares, que trata esta obra.
Por antítese ao herói individual, ao grande «capitão da indústria» ou ao iluminado «empresário de sucesso», falamos do herói coletivo e da sua luta comum por uma Pátria sem opressão, sem exploração e sem subjugação.
O caminho não é fácil mas a obra vai continuar.
Havemos de conseguir!
O herói conveniente
[Quem não tem cão, caça com leão!]
Perdoe-se o novo aforismo, mas há muito que desapareceram os leões de bronze que guardavam o mausoléu do fundador Alfredo da Silva, onde está o epitáfio: «repousa junto da obra que criou e vela pela sua continuidade».
O «abate» dos leões deve ter sido empreendido por alguns «experts» na área dos metais pesados. Armados da Tabela Periódica (sinal de I e D) negoceiam em tudo o que é ferro, cobre, chumbo, prata, ouro, ou as suas ligas (bronze no exemplo). Vidé o sucesso empresarial das lojas de compra de ouro (tantas ou mais que os MacDonald's! ), que levam os anéis que restam à miséria envergonhada dos portugueses a quem o Governo já tinha «cortado» os dedos – o desemprego desmembrou os 1,5 milhões que nele caíram!
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Da continuidade do grande monopólio imperial se encarregaram outros pares da indústria e da finança, enquanto puderam lucrar em proveito próprio e do sistema. Os mais contemporâneos, tentando destruir a Revolução de Abril que pôs fim aos grandes grupos económicos familiares, destroçaram o grande complexo químico – industrial na fúria neoliberal dos finais do século XX – que se prolonga! – eliminando milhares de postos de trabalho, para desassossego da memória tumular.
É sabido que a tradição já não é o que era. Os descendentes do «benfeitor do Barreiro e benemérito da Pátria», venderam aos amigos espanhóis as fábricas que restavam (com centenas de despedimentos!) depois de terem jurado que nunca delapidariam o património, por respeito à «obra do génio industrial».
Curiosamente já o patrono tinha mandado destruir, nos anos 20 do século passado, a capela de St.ª Bárbara e os patrões seguintes apagaram do mapa barreirense o cemitério do mesmo nome onde só ficou o referido mausoléu. Nem uma lápide restou com o registo das centenas de defuntos trabalhadores que ajudaram a construir o império CUF. Assim se faz a história dos vencedores!
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Questionando os dinheiros públicos de suporte a iniciativas de louvor privado (a Baía do Tejo é uma empresa do foro da Parpública!) é necessário reflectir e contraditar a história oficial e as «louvaminhas» sobre o grande «capitão da indústria» e a sua herança histórica.
Atentemos nas seguintes transcrições:
– «A celebrada vertente empreendedora, em que o espírito prático se impunha às convicções (hoje dir-se-ia pragmático!) cultivada com apoios políticos oportunistas – Alfredo da Silva foi deputado «franquista» na Monarquia, senador sidonista na República e procurador à Câmara Corporativa com Salazar – bem como a imagem paternalista do «bom patrão», mitificada para se tornar exemplar no republicanismo conservador e emblemática no fascismo colonialista do Estado Novo, esboroam-se nos exemplos violentos de repressão feroz sobre os trabalhadores em luta, de autoritarismo implacável e na recusa do diálogo com os sindicatos, na gestão paternalista de braço dado com a exploração desenfreada». [1]
– «As comemorações e homenagens aos grandes senhores foram sempre obras de perpétuos disfarces para desculpabilizar responsáveis por opressões, ocultar outros méritos e deixar para a posteridade a meia verdade que esconde contributos essenciais ao êxito alcançado». [2]
[1] TEIXEIRA, Armando Sousa, A CUF no Barreiro, Realidades. Mitos e Contradições, Barreiro 2014.
[2] CARLÒ, Carlos Alberto de Jesus, ibidem.