Direito e linhas tortas

Correia da Fonseca

Foi na passada sexta-feira, último dia de Maio, e não foi bonito de viver. Olhava-se, ouvia-se, e não dava para acreditar: o Tribunal Constitucional, porventura o órgão judicial do País mais considerado pela maioria do povo português, anunciava dar cobertura a um dos casos mais sinistros de espoliação e vigário acontecidos entre nós nos últimos anos. É certo que antes de chegar a esse tristíssimo momento o porta-voz do TC anunciara a decisão de considerar inconstitucionais três iniciativas governamentais cuja constitucional era, aliás, muito abaixo do duvidoso. É também certo que, lá mais para o fim, seria também anunciada a decisão do Tribunal de perdoar, e consequentemente admitir, o esbulho inconstitucional que o senhor governo cometera ao longo dos cinco meses do ano em curso que já haviam decorrido, assim dispensando o executivo de devolver os valores de que ilegalmente se apoderara. Dir-se-ia que os senhores doutores juízes do TC teriam sido sensíveis às pressões por vezes quase brutais que sobre eles haviam sido exercidas, que tinham decidido dar prova pública de que não são «maus meninos» apostados em infernizar a vida do doutor Passos Coelho e dos seus ajudantes, como diria o senhor PR usando a terminologia que adoptou na sua fase PM. Mas o mais chocante estava para vir e acabou por chegar: o anúncio da recusa de considerar inconstitucional um caso óbvio do que surge como burla mediante o incumprimento de contrato devidamente acordado.

A confiança falhada

A coisa não custa a contar; custará, sim, a sofrer por quem foi atingido por esta descarada violência. Tem a ver com trabalhadores reformados da Carris e do Metro a quem, há uns anos, as respectivas administrações convidaram a aceitar a situação antecipada de reforma. Tratar-se-ia, para as tais administrações, de aligeirar significativamente o peso da massa salarial a pagar mensalmente, talvez na perspectiva de uma futura privatização, talvez não, para o caso isso pouco ou nada importa. O que importa, sim, e muito, é que, para reforçarem o poder aliciante do convite que faziam, Carris e Metro assumiram o compromisso de pagar aos trabalhadores que o aceitassem uma determinada verba como complemento da reforma a que de qualquer modo eles teriam direito. Convencidos de que se tratava de empresas honradas e responsáveis, bem como de que viviam num respeitado Estado de Direito, muitos trabalhadores acederam à proposta que lhes era feita e, assim, durante algum tempo puderam sobreviver com maior ou menor desafogo graças ao suplemento de reforma que lhes era pago em cumprimento do que havia sido objecto de efectivo contrato. Eis, porém, que nos finais do passado ano lhes foi comunicado que o contrato iria deixar de ser cumprido por decisão unilateral da empresa, quer dizer, foi-lhes anunciado que, sob abrigo de uma disposição do OE para 2014, iriam ser vítimas do que se revelava ter sido um embuste, uma modalidade tosca do velho «conto do vigário» só inovadora por dispensar o tradicional maço de jornais velhos, substituído pelo incumprimento de uma promessa que constituía de facto condição essencial do contrato que se celebrara entre empresa e trabalhador. Logo a ameaça se concretizou, mas a burla era tão óbvia e escandalosa que motivou diversos pedidos de inconstitucionalidade, quer dizer, de reconhecimento de ilegalidade, dirigidos ao TC. Os trabalhadores tão brutalmente assaltados confiavam nele e na evidência da agressão sofrida. Por isso na passada sexta-feira lhes custava a crer no que viam e ouviam. Porque se apercebiam de que o Tribunal decidira que a ruptura unilateral, por uma empresa, de um contrato celebrado com trabalhadores, não é inconstitucional, não viola os princípios da confiança e da boa-fé. Porque sentiam que o TC os empurrava para a já tão densamente habitada área das privações, eventualmente da fome, provavelmente do desespero. E de todo não haviam esperado que o empurrão fosse dado por aquele punhado de mentes sábias.




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