Sábado sem sol
Era o longamente anunciado dia 17 de Maio e garanto que amanheceu luminoso e já cálido, perfeitamente a condizer com as expectativas que o senhor Governo em geral e o doutor Portas em especial haviam inseminado em nós. Para mais e ainda maior intensidade do júbilo que nos fora prometido era sábado, isto é, dia de folga. Para os que ainda tinham emprego, já se vê, que os outros, os desempregados, folgam todos os dias da semana. Era natural, enfim, que nos dispuséssemos a saborear cada hora, cada minuto, de data tão impacientemente aguardada. Antes mesmo que a televisão nos mostrasse, como mais tarde mostrou, o relógio que o doutor Portas mandara montar no Largo do Caldas, relógio enfim paradinho porque enfim chegara ao termo da sua efémera carreira (pois até ele, coitado, tinha sido contratado a prazo), já os diversos media nos tinham vindo recordar que chegara finalmente o Dia, obviamente que com D maiúsculo mesmo que o contacto meramente sonoro dispensasse a grafia. É certo que quando no ecrã dos nossos televisores pudemos vê-lo, ao relógio, muitos de nós tivemos uma ponta de decepção: não tinha ponteiros como a tradição mandaria, era apenas uma máquina electrónica a exibir uma certa quantidade de zeros. Mas, a seu lado, o sorriso feliz e triunfante do senhor vice-primeiro ministro era como um desfraldado estandarte de vitória, e isso valia como garantia de que «o pior estava passado», como tantas vezes ouvíramos prever.
Porque as nuvens são outras
Foi, pois, neste quadro misto de vitória e felicidade que saí para rua: era sábado, por sinal resplandecente sábado, e não apenas era preciso fazer umas compras, ainda que miúdas, como também a boa notícia induzia a que todos nós respirássemos mais fundo. Mal havia dado uns passos, porém, quando me saiu ao caminho um primeiro contratempo: uma cidadã de meia-idade dirigiu-se-me pedindo ajuda, isto é, uma moeda, alegando que lhe faltava dinheiro para aviar na farmácia a receita que o médico lhe entregara. Pensei, naturalmente, que a criatura não via televisão e, ultrapassado esse pequeno episódio de um quotidiano que afinal já estava encerrado, fui-me encaminhando para o supermercado mais próximo, o que é propriedade do senhor mais rico do País e, decerto por isso e ainda segundo a TV, é aquele em que os velhos confiam. Ainda lá não chegara, porém, quando encontrei o Alberto, jovem filho de uma velha amiga, desempregado há quatro anos. Vinha com má cara, cara de quem não vira televisão naquela manhã, e perguntei-lhe como ia a sua busca de emprego. Respondeu-me com ar deprimido que ia mal, que estava cada vez mais desanimado, cansado de viver à custa da mãe e sem saber o que fazer. Dei-lhe a boa notícia, naturalmente, o relógio do Largo do Caldas terminara a sua carreira e o emprego que ele em vão procurara já decerto estava mesmo a chegar. Mal me despedira dele quando me cumprimentou o senhor Carlos, o desempregado quarentão que há dois anos arruma carros aqui na rua. Contei-lhe do relógio, da alegria estampada no rosto do doutor Portas, da certeza de que tudo vai melhorar, e o senhor Carlos mais não fez que mirar-me em consternado silêncio como se pensasse que eu adoecera. Seguiram-se-lhe a Dona Irene a dar-me a sua má notícia, também ela foi despedida, e ainda o Bernardo, que aproveitou para desabafar: já não aguenta tantos cortes na pensão de reforma e tanto mau passadio. Andados uns passos, deparei com um sujeito que punha alguma ordem nos pedaços de cartão em que se envolvera para passar a noite e que lhe conviria preservar para a noite seguinte. Tudo aquilo era, afinal, o País do costume. Foi então que me pareceu que o ar escurecera e me lembrei de olhar para o céu: não, não tinham surgido nuvens por lá, o dia até prometia ser fiel ao calor desta Primavera com um travo a Verão antecipado. E, contudo, percebi que afinal aquele era um sábado sem sol. Talvez porque o sol mora longe e tudo tem de ser resolvido aqui na terra.