Os capitães omitidos

Correia da Fonseca

Terão sido muitos milhares os que não tendo convite para assistir à celebração de Abril havida na Assembleia da República, nem estando inclinados a deslocarem-se ao Largo do Carmo para ouvirem o doutor Soares e o coronel Vasco Lourenço, optaram por passar a manhã do dia 25 sentados diante dos seus televisores, usufruindo as vantagens proporcionadas pelo serviço público de televisão cujo desempenho, como se sabe, não está limitado aos canais públicos. Assim, tiveram oportunidade de assistir a momentos significativos e de observar pormenores interessantes e eventualmente sugestivos, a começar pela indumentária da senhora presidente da Assembleia da República que aos olhos dos nada informados acerca dos actuais caminhos da moda parecia envergar, talvez por falta de tempo para melhor se compor, umas calças de pijama que aliás talvez não lhe ficassem exageradamente bem. Nada que pudesse impressionar o senhor Presidente da República que, embora manifesta e comprovadamente seja homem de tempos mais antigos e menos atrevidos, a seu lado manteve a máscara inexpressiva que é como a sua marca pessoal de majestade. Republicana, entenda-se. Depois, já dentro do hemiciclo, foi o que poderia esperar-se: cravos em abundância na decoração das tribunas, raros nas lapelas dos membros do Governo (na do PM, na de Nuno Crato, talvez em alguma outra) e nas de deputados da coligação que sustenta o executivo. Na do senhor Presidente, nem pensar: ele não é pessoa para dar sinais exteriores, e para mais vermelhos, de apoio a um movimento desestabilizador que derrubou um regime que mantinha a «ordem nas ruas e nos espíritos», valores manifestamente muito caros ao senhor professor. Depois, de harmonia com o protocolo e decerto para que a sessão se encerrasse com chave de ouro, falou, e do que disse não decorreu nenhuma surpresa: renovou o seu habitual apelo ao consenso, isto é, à união nacional. Também assim confirmando os vínculos que o ligam aos bons velhos tempos em que tudo estava sereno. Como um dia escreveu Sidónio Muralha: de uma serenidade «como as águas de um lago/ infestado de crocodilos».

Os que não tinham farda

Entretanto, os telespectadores viram e ouviram mais coisas. Viram e ouviram as intervenções dos deputados pelos diversos partidos com assento na Assembleia; os que tiveram pachorra para tanto viram e ouviram a senhora presidente; e antes de tudo isso viram e ouviram um coro infantil entoando uma das canções de José Afonso que desse modo acabou por ter a palavra, embora de um modo indirecto, na Assembleia da República. Nesse momento cheguei a recear que as crianças viessem cantar a «Venham mais cinco» porque, quando chegassem aqueles versos em que o Zeca dizia que «só nesta rusga / não há lugar / pr’ós filhos da mãe», alguns dos presentes poderiam sentir-se melindrados. Para lá disto, porém, ouviram-se coisas certas e importantes da boca de alguns deputados, de Jerónimo de Sousa e não só. As referências gratas aos chamados capitães de Abril estiveram entre essas, mas senti a falta da evocação dos outros «capitães» antecipadores de Abril que sem farda nem chaimites, frequentemente apenas com bicicletas, ao longo de quotidianos feitos de perigos e de enormes privações, abdicando de tudo o que se entenderia como «existência normal», muitas vezes adicionando ao seu trabalho a entrega de sangue derramado quando não da vida, durante anos prepararam Abril. Terão estado, sem dúvida, no pensamento de muitos dos que nas ruas, uma vez mais, festejaram a data e reafirmaram que Abril tem de continuar. Mas a lembrança deles teria ficado bem, até seria indispensável, no quadro da comemoração oficial. E não apenas nas palavras dos deputados que lhes tão mais próximos e lhes continuam fiéis. Porque todos, todos, têm para com eles uma dívida ainda em aberto.




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