Emigrantes – de Ferreira de Castro
«A terra em que nasceram e que lhes ensinaram a amar com grandes tropos patrióticos, com palavras farfalhantes, existe apenas (...) para fruição de uma minoria.»
Ferreira de Castro1
1. Voltámos, graças às políticas das troikas que nos vêm desgovernando, a ser, como nos anos 50 e 60 do século XX, um país de emigrantes. Hoje, os que são obrigados a emigrar, forçados pela política de desastre nacional levada a cabo pelo Governo PSD/CDS, têm, em relação às gerações anteriores, como única diferença, apenas questões de forma. Não serão analfabetos, ignorantes dos desígnios que organizam o mundo e a usura do capitalismo, como os pais e avós o terão sido, nem passarão as fronteiras a «salto», levando aos ombros a valise au carton; não engrossarão as turbas de deserdados dos bidonvilles de St-Denis, de Nanterre ou Champigny, mas partem atados à mesma perversa, tolhedora circunstância: a de não acharem no seu país condições que lhes permitam vida digna, pão e espaço para o sonho que dê lastro às suas legítimas expectativas. Esta terra que é a nossa, com a qual sensitiva e culturalmente nos identificamos, permanece, face a erráticas políticas, aos sucessivos desvios de direita encenados e protagonizados, após o 25 de Novembro de 1975, pelos governos do PS (com e sem o beneplácito da direita), e pelo PSD/CDS, um país à deriva, submetido aos mesmos interesses de casta, em permanente retrocesso civilizacional, em obsessivo processo de implementação da narrativa salazarenta: nos discursos, na forma, nos actos, nos desígnios.
A estratégia é simples e, nem sequer, original, e faz parte do ideário mais estafado, filosoficamente rasca, do capitalismo selvagem (se é que existe outro que o não seja), da cartilha de horrores que desde a revolução industrial tem vindo a ser implementada pelos arautos do grande capital, e meticulosamente estruturada nos areópagos dessa sinistra rapaziada (de que o Clube Bilderberg será a face mais visível). Mandantes de pata afiada e arrogantes, agora, em hipocrisia pífia, designados por mercados, julgando que os favores da história lhes são propícios, tentam impor, com métodos de antanho, uma nova sujeição: criar desemprego, hostes de mão-de-obra disponível e em saldo, como outrora faziam nas praças de jorna; espalhar a miséria, travar, pela fome, as justas reivindicações dos oprimidos e impor o tentacular domínio, como senhores absolutos, sobre os novos escravos deste nosso tempo.
2. A voz do povo, enquanto sujeito interventivo da História, surge na nossa literatura, de forma crítica e interventiva, através da pujante obra romanesca de Ferreira de Castro. No romance naturalista O Amanhã, de Abel Botelho, publicado na última década do século XIX, em que o protagonista é um tipógrafo anarquista, algum rumor de inconformismo social e a preocupação de efabular a realidade das classes laboriosas, estava já presente. Mas é através do romance Emigrantes, publicado em 1928, que Ferreira de Castro inaugura na nossa ficção o realismo social o qual antecipa, nos aspectos mais abrangentes e determinantes da denúncia, da inventariação da cupidez, dos mecanismos de opressão que o capital engendra sobre o trabalho, o neo-realismo.
Ferreira de Castro, nascido em Ossela, Oliveira de Azeméis, a 24 de Maio de 1898, filho de camponeses pobres, emigrou para o Brasil com 12 anos de idade. Em Portugal vivia-se ainda a aura romântica (muito camiliana) do «brasileiro-torna-viagem», que buscava em Terras de Vera Cruz o seu El Dourado. Fortuna que Ferreira de Castro não almejou: Do ponto de vista material, esse que tantos homens expatriava para as Américas, eu fui um emigrante vencido.2 Para o Brasil partiu com uma mão cheia de nada e de lá regressou com outra cheia de coisa nenhuma.
Há em Emigrantes, além da sua intrínseca qualidade literária, da delicadeza com que Ferreira de Castro traça almas, como refere Augusto Navarro, uma aguda e séria análise antropológica e cultural das componentes históricas e sociais que nos levaram à diáspora, do arrebatamento atávico, por memórias de fomes ancestrais, que sempre nos impeliram mundo fora. A fuga será, pela componente de aventura e sonho desse acto, mais fácil, dado que impulso individual, do que a concepção colectiva e orgânica da resistência e da revolta. Paralisados pelo medo, angustiados de temor, preferimos a rendição da fuga à coragem cívica de agir e de lutar. Tem sido esse, ao longo dos séculos, o nosso trágico destino – destino que se não vence pela desistência, mas por um colectivo modo de resistir e transformar. Fomos sempre capazes de altos momentos de excepção (a revolução de 1383; as ilusões imperiais do século XVI; o 5 de Outubro; o 25 de Abril) mas incapazes de manter, de aprofundar essas extraordinárias conquistas, de dar voz e sentido às nossas permanentes inquietações.
É numa viagem a Manaus, logo após a publicação de Criminoso Por Ambição, em contacto com outros compatriotas pobres, e face à sua própria experiência, que Ferreira de Castro obterá os elementos que lhe permitiram a elaboração do romance Emigrantes, a sua primeira obra de fôlego, na qual estão plenamente detectáveis as características humanas e solidárias, o olhar crítico e indignado sobre os homens que, sujeitos a todas as vicissitudes provenientes da sua própria condição, transitam de uma banda a outra dos oceanos, na mira de poderem, como Manuel da Bouça, o protagonista de Emigrantes, um dia, saborear aqueles frutos de oiro que outros homens, muitas vezes sem esforço de maior, colhem às mãos cheias, ou seja, as componentes ético-sociais que tornarão singular e incómoda para o fascismo, o seu modo de, através da literatura, denunciar as injustiças e ajudar a transformar o mundo.
Cabe aqui uma referência especial para o labor profissional e a excelência gráfica desta 29.ª edição de Emigrantes e salientar o propósito, a vários títulos louvável, que a editora Cavalo de Ferro se propõe, qual seja o de dar à estampa toda a obra ficcional de Ferreira de Castro. A Missão, 2.º volume deste meritório projecto, está já nas bancas.
Num tempo de grande desnorte editorial, com as nossas livrarias inundadas de subprodutos ditos literários, é estimulante reler, ou descobrir, a prosa arguta, sensível, vibrante e resistente do autor de A Selva. Porque, como afirmou Óscar Lopes, Ferreira de Castro foi o primeiro grande romancista português (...) que se determinou por problemas objectivos e não apenas por impulsos íntimos. E como essa lisura nos é, hoje e aqui, tão necessária.
Emigrantes, de Ferreira de Castro
29.ª edição, Maio de 2013
Cavalo de Ferro
1 Pórtico, in 29.ª edição de Emigrantes – Lisboa, 2013, Edição Cavalo de Ferro
2 Ferreira de Castro, Pequena História de Emigrantes, p.268, in Emigrantes, 29ª. edição, Edição Cavalo de Ferro, Lisboa, 2013