A arte de furtar
Antes do mais, registe-se que o título desta crónica faz vénia ao padre António Vieira e à sua obra, ou talvez mais adequadamente ao não menos padre Manuel da Costa, já que parece ter sido este último o verdadeiro autor da obra que há perto de quatro séculos denunciou a generalização da desonestidade de elevado grau, com referência às diversas formas, muitas vezes imaginosas, noutras vezes apenas disfarçadas, de apropriação pelos mais fortes dos já escassos bens e direitos dos mais fracos. Porém, por acréscimo e compreensível vontade de actualização, à vénia perante os corajosos padres seiscentistas acrescenta-se uma outra, esta dirigida aos actuais detentores dos poderes em Portugal, quer dos poderes formais, supostamente legitimados pelo voto popular a seu tempo seduzido por uma bem sucedida campanha de imposturas, quer dos poderes factuais embora semiclandestinos que, como vai sabendo quem não se deixa adormecer pela superfície das coisas, são os que de facto mandam no País, isto é, em maior ou menor grau, em cada um de nós. E esta segunda vénia decorre do que na passada semana nos foi informado pela televisão, mãe de todas as nossas sabedorias, segundo a qual as reformas dos trabalhadores portugueses passarão a ser fixadas, em futuro próximo, em valores flutuantes condicionados («indexados» é a palavra consagrada pelo jargão de raiz mais ou menos tecnológico que serve lindamente para impressionar o cidadão basbaque) pelo estado da economia: melhoras na economia, mais uns cêntimos nas reformas; economia anémica e/ou em queda, mais apertos no torniquete da «austeridade». Sendo que esta palavra é, também ela, uma forma de camuflagem, de facto significando «pobreza imposta», «imersão mais ou menos profunda na miséria», «violência sobre os já violentados», «crime social». Como bem sabem os que não se deixam enganar. Ou julgam que não deixam, pois até nisto de enganos e desenganos nem sempre o que parece é.
Os figos e as bocas
Temos, pois, que o grupo de facto vasto que por tortuosos e condenáveis caminhos ascendeu às chamadas cadeiras do poder parece ter descoberto matéria para que se acrescente um novo capítulo à famosa obra do padre António Vieira. Ou do padre Manuel da Costa. Trata-se, de facto, de fazer depender o valor das reformas a pagar sobretudo aos velhos e inválidos, mas em rigor não apenas a eles, das decisões tomadas em matéria de economia e finanças pelos que estão situados no alto da pirâmide social. Há um antigo ditado popular que descreve esta situação: «uns comem os figos e a outros rebenta a boca». Como bem se entende, é uma situação óptima para os comedores de figos, péssima para os de lábios frágeis. Mas mesmo quanto aos primeiros há que fazer distinções ou pelo menos atender a situações peculiares. Assim, não é de crer que reduções no valor das pensões, impostas pela saúde eventualmente abalada da economia ou mais provavelmente pela sua anemia perniciosa, resultem em queda significativa do nível de vida do sinistro doutor Catroga. Ou, num outro sector, que o efeito de insucessos económicos se reflicta duramente no orçamento pessoal do senhor Presidente da República que, como é sabido, trocou a sua remuneração como Chefe do Estado, sem dúvida eminentemente honrosa mas pelos vistos relativamente escassa, pelo recebimento das pensões de reforma a que tem direito. De qualquer modo, parece evidente que a eventual adopção da tal indexação economia/reformas conferirá uma acrescida legitimidade à proposta do PCP de que seja estabelecido um critério, de algum modo semelhante, de relacionamento entre o montante das exportações portuguesas e os valores a pagar anualmente pelo chamado «serviço da dívida», com a vantagem de neste caso não se tratar de furto mas de morigeração da usura. Se, como é crível, é disto que se trata, e a dúvida explica-se porque neste caso a televisão não foi muito explícita e pouco ou nada se alongou, abrir-se-á margem para poupar os cidadãos portugueses a acrescidas doses de «austeridade». E, assim, será compreensível que muitos espoliados aguardem com interesse e ansiedade o que a televisão condescenda em acrescentar acerca do assunto.