Reportagem em Los Angeles
Aqui pelas Europas, no plural porque bem se sabe haver mais que uma, vai-se sabendo como vão as coisas: «a fome continua, /a miséria, o luto, e outra vez a fome», como um dia escreveu José Saramago. Continua não em todas as mesas, é improvável que não sejam bem abastecidas as mesas da Merkel, dos seus súbditos e agentes nos diversos recantos europeus, mas é claro que mesmo na pauperizada Grécia haverá quem se abasteça fartamente, pois isto da miséria nunca é como o Sol que, diz-se, quando nasce é para todos. De qualquer modo, é certo que da Europa se vão sabendo coisas e não só pela experiência portuguesa, acontecendo que essas sabedorias segregam a angústia e o reflexo de indignada rejeição que são o nosso crescente quotidiano. Porém, quanto ao outro lado do Atlântico, mais exactamente quanto aos Estados Unidos, a generalidade das gentes não sabe assim tanto. Vai sabendo que são uma grande potência militar e que mantêm uma provisão de armas nucleares bastante para rebentar com o planeta num ápice ou talvez no breve tempo de uma distração, que lá vive decerto muito bem o punhado de gente que detém a maior percentagem de riqueza no mundo inteiro, que dos Estados Unidos vêm as ordens que deverão ser prontamente acatadas nos quatro cantos do mundo se não é pior. Vai-se sabendo isto, pois, e pouco mais, sendo que o que se sabe é geralmente suficiente para gerar uma amálgama de admiração, inveja e algum medo mascarado de respeito. Sabe-se também que os Estados Unidos são um país muitíssimo democrático, sobretudo desde que um negro (embora claro) foi eleito para a presidência, e que os norte-americanos são tão democráticos que exportam democracia, ainda que pela força das armas, para quaisquer lugares que lhes pareçam pouco democráticos.
Para uma visão lúcida
Porém, a par do que se sabe acerca desse grande e poderoso país está o que não se sabe e, não se sabendo, se adivinha. Bem ou mal. Adivinha-se, por exemplo, que nos Estados Unidos há poucos pobres, ou melhor, que mesmo os pobres norte-americanos vivem melhor do que os pobres ou os remediados europeus. Como é natural, a porção do que não se sabe acerca dos Estados Unidos pode gerar uma compreensível curiosidade, e há-de ter sido por isso que fiz questão, um dia destes, de não perder um episódio da série «Infiltrados nos Estados Unidos», transmitida às 22 e 30 horas dos sábados pelo National Geographic, canal acessível por cabo. A infiltração presente no título não é coisa de espionagens ou afins, é apenas o trabalho de uma equipa de jornalistas norte-americanos, a portuguesa Mariana Van Zeller e Darren Foster, seu marido, que «visita» camadas sociais marginalizadas ou actividades pelo menos pouco representativas do que geralmente é entendido como o modo de vida norte-americano. Não cabe aqui nem sequer uma parte menor do que me ensinou a reportagem desta vez localizada na zona de Los Angeles mas com visão para todos os Estados Unidos, podendo contudo registar que segundo Mariana e Darren, decerto bem documentados, o número de cidadãos sem-abrigo no grande país da América ascende a três milhões (quase tanto quanto toda a população da República da Irlanda), e que anualmente saem de suas casas mais de milhão e meio de jovens norte-americanos que mergulham no submundo da marginalidade e da delinquência. Estabelecer a relação entre este e outros dados e a teia de mitos norte-americanos de que decorre a ilusão de o «american way of life» constitui uma forma tão superior de modelo social que é legítima a sua exportação para o resto do mundo ou, mais descaradamente, que a «democracia made in USA» pode e deve ser tomada como exemplo, é um exercício decerto benéfico para uma visão lúcida da actualidade. Por mim, como bem se entenderá, tenho o maior interesse em não perder os episódios seguintes da série «Infiltrados nos Estados Unidos» da Nat Geo. Porque Mariana Van Zeller e Darren Foster não me parecem ser agentes soviéticos atrasados no tempo e, naturalmente, tenho interesse em acrescentar mais alguns dados insuspeitos à colecção de informações credíveis que tenho acerca da nação que manda no planeta e em muitos lugares impõe a fome, a peste e a guerra.