Tempos bárbaros

A li­te­ra­tura, e o Te­atro em par­ti­cular é, como re­fere Oc­távio Paz, «uma arte de co­mu­nhão», com a par­ti­cu­la­ri­dade de, no caso do te­atro, esta li­gação, quase ri­tu­a­lista, só se cum­prir in­tei­ra­mente pe­rante o pú­blico, sobre as tá­buas de um palco.

A or­gâ­nica con­cep­tual destas duas peças de Carlos Cou­tinho, O De­poi­mento da Fa­mília Mar­tins e Homem Certo em Casa Certa, re­leva da sua ín­tima con­so­nância com o real, mesmo quando a re­a­li­dade que ex­pressam se fecha no es­trito cír­culo fa­mi­liar. A fa­mília como mi­cro­cosmos dos signos da opressão, poiso larvar de uma outra, assaz mais vasta e ten­ta­cular. Estas peças partem de uma re­a­li­dade re­co­nhe­cida para trans­porem outra di­mensão me­ta­fó­rica: a da usura, da ga­nância sem ética nem li­mites; do homem afas­tado da sua hu­ma­ni­dade, a ungir-se es­pé­cime de nova bar­bárie in­qui­e­tante e per­versa.

Não é a vida que se re­pre­senta nestes textos, é um atavio dela, um si­mu­lacro, ou seja, um modo te­a­tral de re­pre­sen­tação de uma cruel re­a­li­dade que, não sendo per­cep­tível no ime­diato, con­fi­gura e re­vela, de forma de­sas­som­brada, o que no in­te­rior de uma so­ci­e­dade do­ente – a do­ença das casas, de que nos fala Ma­nuel An­tónio Pina – vai ger­mi­nando os ovos de ser­pentes fu­turas. No en­tanto, estes dois pre­textos te­a­trais de Carlos Cou­tinho, autor já ver­sado nestes me­ca­nismos de si­mu­lação, bri­lhante ma­ni­pu­lador das téc­nicas da es­crita para te­atro – sa­li­ento peças como O Her­bi­cida e A Última Se­mana Antes da Festa (este, um texto a re­vi­sitar nos dias que vi­vemos) –, visam, e con­se­guem-no com clara, crua in­tei­reza, falar dos me­ca­nismos de rup­tura que vão de­mo­lindo os nú­cleos fa­mi­li­ares nas so­ci­e­dades ca­pi­ta­listas con­tem­po­râ­neas – e não apenas em Por­tugal, ob­vi­a­mente. Não já o chico-es­per­tismo do pe­queno bur­guês sa­la­za­rento que pro­cu­rava, com al­guma manha, tirar di­vi­dendos de si­tu­a­ções que lhe per­mi­tisse, no de­sen­rasca quo­ti­diano, gran­jear al­guns pro­ventos, mas a usura, a ava­reza que não olha a meios para al­cançar ab­jectos fins. É da au­sência de va­lores, de uma so­ci­e­dade do­ente, sem ética, de­sa­pos­sada de ide­o­logia, que estes textos te­a­trais falam, sem con­tem­pla­ções, sem con­tornar a du­reza de uma re­a­li­dade que é cada vez mais vi­sível e nos açoita. Carlos Cou­tinho, de forma lú­cida, com sagaz fron­ta­li­dade, diz-nos que é isto que o vam­pi­rismo ca­pi­ta­lista ne­o­li­beral está a fazer das pes­soas, às pes­soas: a de­su­ma­nizá-las, a trans­formá-las em meros tí­teres acrí­ticos e sór­didos, ma­ni­e­tados por um sis­tema po­lí­tico e so­cial que di­a­ri­a­mente as acossa, lhes mostra, como exemplo, a vi­leza, a mes­qui­nhez em que esse mo­delo se es­tru­tura.

Estas peças de Carlos Cou­tinho trans­portam, mesmo que ao tempo da sua ela­bo­ração (1977/​78, na pri­meira; 1979, na se­gunda) não fosse esse o ob­jec­tivo cen­tral do autor, por pre­claro des­co­nhe­ci­mento das de­rivas fu­turas – o autor é um de­miurgo, mas convém não exa­gerar – al­guns si­nais, já então vi­sí­veis na so­ci­e­dade por­tu­guesa do pós 25 de Abril, do que hoje é o Por­tugal sob a égide das troikas. O autor de Uma Noite na Guerra, fez bem em ter pu­bli­cado estas peças em 2013: são de uma pun­gente ac­tu­a­li­dade, e digo-o sem ponta de jú­bilo.

Se a acção de O De­poi­mento da Fa­mília Mar­tins se passa nos anos 1975, entre o 11 de Março e o 25 de No­vembro, o que lhe está sub­ja­cente vai muito para além desse pe­ríodo e en­tronca nos dias bár­baros que vi­vemos.

Tal como na no­vela de Ni­colai Gogol, O Ca­pote, também a per­so­nagem prin­cipal da peça O De­poi­mento da Fa­mília Mar­tins aca­lenta o sonho, sempre adiado (o ca­pi­ta­lismo tem a sua ló­gica tri­tu­ra­dora) de pos­suir o seu pró­prio táxi, ser pa­trão de si pró­prio. E esse sonho, de que não estão au­sentes os re­ceios que aco­me­tiam a pe­quena bur­guesia (de que estas peças traçam im­pi­e­doso re­trato), a co­meçar pela com­ple­xi­dade po­lí­tica da época, cujos me­ca­nismos Fran­cisco Mar­tins não com­pre­ende e aos quais, re­ac­ci­o­na­ri­a­mente, se opõe; esse sonho, dizia, cons­titui forma única e ob­ses­siva da sua parca exis­tência. A esse sonho irá su­jeitar tudo: a filha, a mu­lher e a pró­pria mãe viúva. A mãe, à qual sai a ta­luda, mil e qui­nhentos contos, será a ví­tima mo­delar desse sonho e da ali­e­nação que o acom­panha. Com o irmão mais novo, um fas­cista pri­mário e vi­o­lento, con­ge­mi­nará forma de matar a mãe, que sofre de asma e ne­ces­sita de me­di­ca­mento para ate­nuar as suas con­tí­nuas crises, para que ambos possam herdar o pe­cúlio. Mas o es­quema sai go­rado.

A se­gunda peça, Homem Certo em Casa Certa, é um exer­cício cruel sobre uma re­a­li­dade que o não é menos. Um acto lhe basta para de­molir todo o edi­fício bem pen­sante da mi­to­logia sa­la­za­renta, e cí­nica, que erigiu como brandos os cos­tumes in­dí­genas. Um pai, ca­sado em se­gundas núp­cias tem, do an­te­rior ca­sa­mento, um filho in­vá­lido. Um filho que é, para a eco­nomia ca­seira, um peso inútil, um em­pe­cilho, so­bre­tudo quando a mu­lher, a se­gunda do lote, fica de­sem­pre­gada. O quarto que o in­vá­lido ocupa pode, se a si­tu­ação se re­solver, ser alu­gado e, desse modo, acres­centar uns trocos ao es­casso or­ça­mento fa­mi­liar. O pai tem pressa, o di­nheiro faz falta e, para grandes males, grandes re­mé­dios. O homem lê, lê os pas­quins que trazem os crimes na pri­meira pá­gina. Sabe, a partir dessa in­for­mação de pa­cote, que um ve­neno para ratos, Ratex, ao caso, é letal, eficaz igual­mente nos hu­manos. Não he­sita. Sabe que o custo de vida está a au­mentar, a tornar-se in­su­por­tável, so­bre­tudo de­pois que o go­verno de Vasco Gon­çalves (tal é re­fe­rido igual­mente na pri­meira peça) foi subs­ti­tuído por um mais con­forme aos de­síg­nios do grande ca­pital. Nada mais eficaz que o Ratex, uma porção ra­zoável, na sopa e na açorda. As­sunto ar­ru­mado, por­tanto. Ou não.

Ao te­atro cabe, como já Sha­kes­peare, através do seu Hamlet o de­finia, ofe­recer um es­pelho à na­tu­reza, mos­trar à vir­tude os seus pró­prios traços, ao vício a sua pró­pria imagem, e a cada época do tempo que passa a sua forma e fi­si­o­nomia par­ti­cu­lares. O Homem, na sua in­qui­e­tude exis­ten­cial, in­ventou a li­te­ra­tura, e o te­atro, para res­gatar a me­mória, para se con­se­guir vingar, re­flec­tindo-o e per­pe­tu­ando-o, do tempo que lhe foi dado viver – e, nas mais altas ex­pres­sões da sua cri­a­ti­vi­dade, como forma úl­tima de jus­tiça e de mo­ra­li­zação dos seus con­ci­da­dãos.

Estes textos de Carlos Cou­tinho devem saudar-se como raro en­contro que a nossa dra­ma­turgia con­tem­po­rânea, tão fus­ti­gada pelos po­deres e pelos agentes cul­tu­rais que lhe são afins, vem ten­tando es­ta­be­lecer com a nossa his­tória re­cente. Ca­mi­nhemos, por­tanto, se­guindo os passos do jovem José, per­so­nagem po­si­tiva da peça O De­poi­mento da Fa­mília Mar­tins: Ter razão é uma coisa muito boa, sabes? Não te deixes trau­ma­tizar por esta cena. Não te es­queças de ir votar. É essa uma das armas que temos, digo eu, e como o poeta acres­cento que Ter razão é uma forma de ale­gria! A que nos le­vará, se le­van­tados, aos dias justos!

O De­poi­mento da Fa­mília Mar­tins,
se­guido de Homem Certo em Casa Certa
de Carlos Cou­tinho
Ed. Fonte da Pa­la­vras/​2013




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