Um tiro em Dezembro

Correia da Fonseca

Foi já num dos dias que integram a chamada «quadra do Natal» que a televisão nos trouxe a notícia: algures no Norte, creio que em Gaia, um homem de cabeça perdida empunhara uma espingarda e assassinara uma mulher. Poderia ter sido mais um crime passional desses que com relativa frequência surgem nos telenoticiários, mas não era: neste caso, o confesso matador havia sido um inquilino que, perante a iminência de ser despejado da sua casa por ter deixado de pagar a renda mensal, optara por enfiar uma bala no crânio da senhoria que decidira a sua expulsão. A notícia não adiantava mais informações, não acrescentava se a falta dos pagamentos havia sido consequência de o inquilino ter perdido o emprego, o que nos tempos que vão correndo não seria de espantar, se resultara de um incomportável agravamento do valor da renda mensal na sequência da ainda relativamente recente nova Lei do Arrendamento Urbano, se de qualquer outro motivo; não acrescentava essas informações complementares e era muita pena que não o fizesse. Porque, na ausência desses dados, tornava-se muito possível, se não inevitável, que esta sinistra «lei das rendas», crismada de «lei dos despejos» por quem bem a estudou e dela previu as consequências, surgisse aos olhos dos telespectadores atentos como suspeita de ser a grande responsável pela tragédia acontecida em Gaia em vésperas do Natal, altura do ano em que precisamente a casa de cada cidadão surge como o supremo aconchego e porventura o último refúgio de quem pouco mais ou nada tem.

«A minha casa»

Em verdade, parece-me coisa de muito espantar que as muitas e diversificadas consequências da tal nova «lei das rendas», frequentemente terríveis ainda que não atingindo o grau de suprema tragédia que podem ter atingido, ou não, em Gaia, seja assunto tão pouco abordado na comunicação social e até no discurso político corrente. Acrescentarei que até me intriga um pouco que o tema ainda não tenha sido objecto de uma emissão do «Prós e Contras» que, a ser realizada, poderia trazer à tona da opinião publicada alguns dos horrores desencadeados pela lei em negra hora imposta pelo Governo Passos Coelho através da ministra Cristas. Por mim, que não sou ninguém e não tenho acesso a informações com significado amplo e valor estatístico, já soube de casos de lares destruídos, de vidas arruinadas, de gente que sendo forçada a perder a sua casa de toda uma vida ficou apenas à espera de que a própria existência chegue ao fim, e depressa. Lembremo-nos de que a expressão «a minha casa», mesmo que a casa em questão não seja propriedade de quem dela fala, comporta um sentimento de incomparável peso na imaginária bagagem existencial de cada cidadão: diz-se «a minha casa» um pouco como quem diz «a minha vida» ou «a minha construção ao longo dos anos», se não «o lugar onde brincaram os meus filhos» ou «onde morreram os meus pais». E note-se que a devastação que já por aí vai, silenciosa, quase clandestina, é previsível que por efeito da mesmíssima lei se agrave dentro de alguns anos, não parecendo excessivo que desde já se pressinta para essa altura um verdadeiro maremoto de desgraças que poderá percorrer o País de Norte a Sul. Entretanto, não será absurdo recear desde já que, noticiados ou não pela TV e outros meios, então se vá sabendo do som de tiros disparados aqui ou além por gente desesperada. Sem que o Governo, pouco dado a comoções perante os dramas do povo, se impressione com isso.



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