Personalidade histórica e multifacetada
Para além de militante e dirigente revolucionário, Álvaro Cunhal foi também um intelectual, um artista e um pensador das questões estéticas. Foram estas últimas vertentes que se evocou na sessão pública realizada no sábado, em Lisboa.
A arte é uma forma de transformação da vida
A data e o local escolhidos para esta sessão não podiam ser mais simbólicos. Foi precisamente a 14 de Dezembro de 1994, no mesmo hotel de Lisboa, o Hotel Altis, que Álvaro Cunhal reconheceu ser Manuel Tiago, o autor de «Até Amanhã, Camaradas», de «Cinco Dias, Cinco Noites» e de «A Estrela de Seis Pontas», em cujo lançamento ocorreu essa revelação (ver caixa).
No passado sábado, Jerónimo de Sousa começou por salientar precisamente o carácter multifacetado da personalidade de Álvaro Cunhal, que não só se interessou por várias esferas da acção humana como praticou as artes e a cultura: «Como artista, foi escritor, traduziu Shakespeare, pintor e, se não levou mais longe a sua paixão pela música, foi por manifesta incompatibilidade entre as exigências da arte e as suas condições de vida, na prisão e na clandestinidade», acrescentou o Secretário-geral do PCP. Procurando discernir a razão de tal «traço de união entre o militante revolucionário e o artista», Jerónimo de Sousa arriscou: ele dever-se-á ao facto de, para Álvaro Cunhal, as artes «tenderem a ser, tal como a acção política revolucionária, formas de intervenção na transformação do mundo e da vida».
Tal unidade entre o artista e o revolucionário, salientou o dirigente do PCP, fica clara nas suas narrativas, nas pinturas e desenhos e nos principais textos sobre estética, como aqui já se evidenciou também. No caso da obra literária, precisou, a intervenção transformadora «lê-se no que mobiliza as personagens e nos acontecimentos que são recriados». Centrando-se particularmente em «Até Amanhã, Camaradas» e «Cinco Dias, Cinco Noites», que seriam «por si só provas suficientes do talento literário de Álvaro Cunhal», Jerónimo de Sousa lembrou que escreveu depois disso e até à sua morte.
Antes, já o Secretário-geral do PCP tinha lembrado as palavras de Óscar Lopes no prefácio à 9.ª edição de «Até Amanhã, Camradas», no qual se questionava acerca das razões que levavam a que «um romance já tão lido e a vários títulos tão importante, tenha sido tão ignorado pela crítica?». A resposta está na necessidade que alguns tinham de esquecer e fazer esquecer o que a democracia devia aos comunistas. Para Jerónimo de Sousa, com as comemorações do centenário, pretendeu-se fazer precisamente o oposto: lembrar e não deixar esquecer o «legado revolucionário que a vida, o pensamento e a luta de Álvaro Cunhal constituem»
Arte e estética
No que respeita à obra plástica de Álvaro Cunhal, o Secretário-geral do Partido salientou que também aí está presente a «vida do povo que sofre e luta está presente». No desenho e na pintura, acrescentou, Cunhal representou episódios da vida dos camponeses e dos pescadores, entre as quais se contam cenas de combate e luta, bem como de repressão e do apoio a feridos e mortos. Nos temas que abordou, afirmou ainda Jerónimo de Sousa, «expressa e evidencia sentimentos que vão da alegria à solidariedade na luta e na dor ou na tragédia, ao sofrimento e às dificuldades do quotidiano»; mas expressando, sempre, determinação, força colectiva e confiança no futuro.
Jerónimo de Sousa salientou ainda a teorização de Álvaro Cunhal sobre a arte e a estética, patente em discursos, artigos e ensaios. Desta teorização ressalta a rejeição de qualquer imposição de modelos estéticos ou escolas estéticas.
O dirigente do PCP guardou ainda umas palavras para contestar o rumo da política do Governo e da troika para o sector da cultura, marcado hoje por uma «profunda crise» e pelo «abandono de qualquer perspectiva real» de democratização.
Para além de Jerónimo de Sousa, interveio ainda o membro do Comité Central José Casanova. Houve ainda diversos – e emotivos – momentos culturais.
No Avante! em Dezembro de 1994
«Manuel Tiago é Álvaro Cunhal»
No Avante! de 22 de Dezembro de 1994 noticiava-se a sessão de apresentação da obra «A Estrela de Seis Pontas» em que Álvaro Cunhal assumiu ser Manuel Tiago. Na ocasião, Álvaro Cunhal explicou por que razão escreveu as suas obras sob um pseudónimo: «haver uma experiência de vida que se deseja transmitir de forma literária, mas sem o autor ter o projecto de se tornar escritor ou enveredar por uma carreira literária.» O importante, acrescentou então, não seria quem escreveu mas se a obra era ou não um «retrato fiel da realidade da luta antifascista».
Acerca da razão pela qual decidiu revelar a verdadeira identidade de Manuel Tiago, o Avante! noticia que Álvaro Cunhal reconheceu ter sido levado a fazê-lo por um conjunto de factores que suscitaram essa reflexão: «Primeiro, uma crítica publicada num jornal pretendia atribuir a autoria de “Até Amanhã, Camaradas” a um dissidente do PCP; depois, um intelectual procurou Cunhal para saber o que este pensava da sua intenção de divulgar o verdadeiro nome de Manuel Tiago que lhe lhe fora revelado por um dirigente comunista (este, como o do alegado autor, já falecidos). Como resultado da reflexão, surgiu a decisão de tornar pública a verdadeira identidade de Manuel Tiago».