A despedida
Para o Zé Casanova, porque sim e pelos muitos anos de camaradagem, respeito e amizade (Couço-Lisboa)
Sim, Sofia, este nosso jantar é de despedida. Desde há muito tempo que esta ideia foi crescendo na minha cabeça e agora está decidido. Conhecemo-nos a fugir da polícia numa manifestação de estudantes, quando eu te puxei para dentro duma porta aberta, que fechámos, e subimos por umas escadas até tudo se acalmar. O medo e a solidão daquela escada fez com que nos aproximássemos tanto que nos tocávamos. Pousaste a tua cabeça no meu ombro e ali ficámos um bom bocado. Passámos a andar sempre juntos, apesar de que eu estava em engenharia no Técnico, no 3.º ano e tu teres acabado de entrar para direito na Cidade Universitária. Numa tarde em que ficámos sozinhos na casa do nosso amigo Jaime, beijámo-nos furiosamente e acabámos na cama dele. Foi a primeira vez que fizemos amor tanto eu, como tu, porque os dois éramos virgens. Depois por causa da tropa em Angola e da mudança dos nossos ritmos de vida, afastámo-nos e quando voltei soube que te tinhas casado e tinhas um filho. Já eras advogada. (Estamos em Évora na Tasca do Oliveira, um pequeno e extraordinário restaurante. O Oliveira, que conheço há mais de 30 anos traz-nos as melhores pataniscas do mundo, finas, estaladiças, sequinhas e quentes). Deixámos de ver-nos, até que um dia saindo do Cinema São Jorge, depois de ver um filme do Antonioni ou do Bertolucci, reparaste em mim e aproximaste-te a sorrir. Sim, é verdade, reparei em ti e vi que apesar de vestido informalmente continuavas a ser o tipo elegante de que eu me tinha apaixonado uns anos atrás. A tua cara foi de surpresa total, até de incredulidade, mas beijámo-nos civilizadamente. Decidimos ir tomar qualquer coisa e entrámos na Riba D’Ouro logo abaixo do Cinema. Bebemos cerveja e falámos durante mais de duas horas. Contámo-nos as nossas vidas e soube que não te tinhas casado, nem saías com ninguém. Não me quiseste contar por quê. Combinámos que nos veríamos de vez em quando e trocámos telefones. Quando nos separámos e aquele olhar ficou no ar, soube que ainda gostava muito de ti. (O Oliveira trouxe os pezinhos de coentrada e a canja de pombo. Serviu-nos e retirou-se). Brindemos, Sofia, com um tinto alentejano bem encorpado e peço-te que te lembres quando te obriguei a ler o livro do Vásquez Montálban, «Receitas Imorais», em que dá uma receita e depois faz o comentário sobre com quem se deve comer aquele prato e das consequências previsíveis. Pois eu acho que era capaz de escrever o comentário dele sobre esses pezinhos que escolheste: «prato mais que imoral, totalmente pecaminoso, porque a gelatina de que se compõe dá voltas na boca numa união total com o palato e a língua. Aparentemente saboreamos os pezinhos e os coentros, mas na realidade recordamos os longos e profundos beijos que se dão ou deram em que é impossível saber de quem é esta língua ou estes dentes. Deve ser comido por gente a partir dos 50 anos, com bastante experiência amatória prévia». Acho que tens toda a razão e rio-me com as tuas teorias gastro-amorosas, mas tens razão. Nós sabemos que tens razão. Lembro-me que te telefonei para casa e me disseste que tinhas acabado de chegar de uma obra. Só tinham passado três dias, mas eu necessitava ver-te. Levaste-me a comer peixe, só grelhado sem artifícios, e estava nervosa porque não havia nenhuma razão para tanta pressa. Decidi passar-te o problema para ti e perguntei-te porque não te tinhas casado. A tua resposta foi clara e demolidora. Disseste que tinhas encontrado alguma moça bonita, simpática e inteligente, que sabias que gostava de ti, mas que no meio da eventual relação sempre te aparecia a minha cara e deixavas tudo. Sim, foi assim e disse-te que te respeitava, mas que continuava a amar-te como no princípio. Tu ficaste muito nervosa e muito baixinho falaste: eu também te amo mas não sou capaz de romper com a minha família e com as pessoas que me rodeiam. Compreendo e aceito, mas eu serei como o personagem do livro do Garcia Marquez «O amor em tempos da cólera», que esperou toda a vida até que a sua amada, que também sempre o amou, pudesse reunir-se com ele. Por isso, não me casarei e esperarei até que tu possas cumprir o nosso sonho. Depois desta conversa passamos a ver-nos quase todas as semanas, vivemos o nosso amor durante dezenas de anos e éramos provisoriamente felizes. (entretanto o Oliveira chegou-se à mesa e perguntou se tudo estava bem e eu pude elogiar o tenro pombo e o seu caldo sublime e tu disseste-lhe que nunca tinhas comido uns pezinhos de coentrada tão bons). Antes de tudo isto eu, que já era do partido, levei-te comigo para a luta séria, difícil e perigosa. Mostraste qualidades, inteligência e capacidade, pelo que te convidei a entrar no partido, com muito fascismo ainda pela frente. Estávamos juntos em tudo. Quer na clandestinidade, quer depois do 25 de abril, tu advogada de família, participaste em muitas organizações e lutaste muito, quer nos momentos maus como nos bons. Cada vez eras mais considerada e eras incansável. Eu também lutei muito, mas de maneira diferente, em coisas mais práticas, mesmo se algumas eram muito importantes. Ajudei a construir dezenas de Centros de Trabalho e muitas outras coisas, mas era diferente de ti. Um dos momentos mais belos que tenho da nossa vida, foi num congresso do partido, em que os dois éramos delegados, eu votei para que tu fosses eleita para o comité central. E lá estás. Chorei sentado no meu lugar, longe de ti, mas tu viste-me. Agora és uma referência dentro e fora do partido. Eu estou cansado. Não tenho paciência para ouvir o analfabeto do Cavaco, os ignorantes e vendidos tipos do governo, os choninhas do PS, filhos da mesma mãe que os do governo, o teledirigido desde longe Mário Soares, a cambada de chupa gorjetas, que, como as moscas rodeiam o poder, a elite de patrões que mandam neste país desde o tipo do Jerónimo Martins até ao rapaz do Norte Belmiro e ao rei da rolha, banqueiro e vendedor de gasolina Amorim e menos paciência tenho para ver a cara dos ex, tipo Mário Lino ou Pina Moura, cuja ideologia muda com um lugar de ministro num governo infecto ou em vários conselhos de administração. (O Oliveira trouxe-nos uma encharcada e duas colheres). Por tudo isto amiga querida, meu amor, hoje despeço-me de ti e começo uma viagem para longe onde eu não entenda o que dizem, não tenha televisão e possa dormir em paz. Às vezes sinto-me um desertor da luta, um egoísta, nunca serei dos que Brecht dizia «e há os que lutam toda a vida, os imprescindíveis», mas realmente só estou a defender a minha saúde. Estes tipos, que eu não sou capaz de matar, vão-me matar a mim se não fujo. A minha cabeça rebenta. Peço-te que me entendas. Irei estrada fora, até encontrar um sítio, onde me possa encontrar a mim. Não abandono o partido, uma das minhas razões de viver, sei e vejo que muitos jovens ocupam os novos cargos de responsabilidade, e fico feliz. Nós já fizemos isso quando éramos da sua idade, mas eles estão mais bem preparados. Não te deixo, nunca te poderei deixar, és o amor de uma vida inteira e quando tu decidas voltarei imediatamente, viveremos juntos, mesmo se já formos velhos. Estaremos em contacto. Conta-me tudo. Mas para onde vais? Não sei, já pensei muitos sítios, alguns que me pareciam bons estão muito longe do mar e eu sem peixe não posso viver. Talvez experimente a costa Sul da Sicília. Se ficar aí, dir-te-ei. (ao sair disse ao Oliveira: vou demorar um tempo largo a voltar aqui, porque vou começar uma viagem de anos. Desejo-lhe felicidades e beije por mim as mãos da sua mulher e cozinheira excelente D. Carolina. Notei-lhe um leve rasgo de emoção). Saí e Sofia esperava-me no passeio, caminhámos uns metros com as mãos abraçadas e na Praça do Teatro Garcia de Resende parámos, beijámo-nos e foste para o teu carro. Vi-te partir e fiquei sozinho na Praça.
Não havia ninguém na rua. Só silêncio.