Pedro e a loba

Correia da Fonseca

Com maior ou menor ex­tensão, todas as ope­ra­doras por­tu­guesas de TV trans­mi­tiram ex­certos da in­ter­venção de Pedro Passos Co­elho no en­cer­ra­mento da cha­mada Uni­ver­si­dade de Verão do PSD, e em ver­dade vos digo que foi um es­pec­tá­culo feio de se ver e de se ouvir. Por­ven­tura com vigor re­for­çado pelos ares la­vados de Cas­telo de Vide, lindo sítio, Pedro atirou-se à Cons­ti­tuição da Re­pú­blica como gato a bofe, com perdão da imagem ex­ces­si­va­mente po­pular para ma­téria de tão alto es­trado. Com­pre­ende-se: Pedro não quis ir para pri­meiro-mi­nistro de Por­tugal para ser con­tra­riado e, para mais, con­tra­riado por um mero texto legal que a co­berto de ser cha­mado Lei Fun­da­mental pa­rece en­car­niçar-se contra todas as ex­ce­lentes ideias de Pedro para re­duzir Por­tugal à mi­séria e a es­ma­ga­dora mai­oria dos por­tu­gueses à con­dição de in­di­gentes. Tem Pedro uma ideia bri­lhante, como a de re­meter mais uns bons mi­lhares de fun­ci­o­ná­rios pú­blicos para a si­tu­ação de de­sem­prego após uns meses in­ter­ca­lares de an­gústia, e eis que a Cons­ti­tuição salta em cima da bri­lhante ideia, a es­tra­çalha, a reduz a des­troços. Como se ela, a Cons­ti­tuição, sur­gisse para Pedro como um im­pla­cável animal sel­vagem. De onde a su­gestão do tí­tulo que hoje en­cima estas duas co­lunas, pois se do óbvio furor exi­bido por Pedro em Cas­telo de Vide al­guma con­tra­par­tida po­si­tiva pode ser ex­traída, que seja um tí­tulo que im­plique uma mo­des­tís­sima, tosca e algo tonta ho­me­nagem ao grande com­po­sitor de «Pedro e o Lobo», com a Cons­ti­tuição a tomar o lugar de loba na ma­goada sen­si­bi­li­dade do Pedro por­tu­guês que, se­gundo ele pró­prio, quer por força go­vernar Por­tugal mas não con­segue fazê-lo com a loba sempre vi­gi­lante.

Raivas e ranger de dentes

É certo que desta vez Pedro não se queixou di­rec­ta­mente da Cons­ti­tuição da Re­pú­blica, mas sim dos juízes que in­te­gram o Tri­bunal Cons­ti­tu­ci­onal e que se atre­veram a re­provar as suas óp­timas ideias, tais e tão ile­gais que até à mi­opia do se­nhor Pre­si­dente da Re­pú­blica ha­viam sus­ci­tado dú­vidas. Apa­ren­te­mente, Pedro es­queceu-se da forma as­su­mida pela re­pro­vação quanto aos votos ex­pressos (una­ni­mi­dade num dos casos, seis votos em sete num outro) e de que o PSD teve re­le­vante par­ti­ci­pação na de­sig­nação de al­guns dos juízes do TC, o que sig­ni­fica que as vi­o­la­ções da Cons­ti­tuição nos textos sub­me­tidos ao exame do Tri­bunal eram ní­tidas e por­ven­tura ób­vias. Mas a su­posta es­per­teza de Pedro para nos con­vencer de que a sua có­lera era sus­ci­tada por sete juízes e não pela Cons­ti­tuição da Re­pú­blica es­tava con­de­nada ao fra­casso. Pedro en­ganou-se: é certo que há dois anos e picos uma grande parte dos elei­tores por­tu­gueses levou o PSD ao poder, mas não é certo que de então para cá toda essa gente tor­pe­mente en­ga­nada tenha fi­cado ce­guinha para o logro em que in­correu e surda aos cla­mores de in­dig­nação que a po­lí­tica de Pedro tem sus­ci­tado. De resto, quem tenha dis­pen­sado um pou­co­chinho de atenção para o que Pedro sempre disse e re­petiu lem­brar-se-á das pa­la­vras de re­jeição, se não de ódio, com que Pedro sempre se re­feriu à Cons­ti­tuição que aliás antes mesmo de as­sumir o poder se propôs al­terar a seu jeito. Na ver­dade, a fla­grante in­con­for­mi­dade de Pedro re­la­ti­va­mente à Cons­ti­tuição da Re­pú­blica talvez de­vesse ter sido im­pe­di­mento à sua as­sumpção à chefia do go­verno, isto na sequência da an­tiga lição de que não deve ser in­tro­du­zido um gi­gan­tesco ca­valo de ma­deira dentro das mu­ra­lhas de Troia, o que se anota com a de­vida vénia para a mi­to­logia grega e com es­cusas pela apenas apa­rente in­de­li­ca­deza da imagem usada. De qual­quer modo, o que im­porta re­gistar aqui é que a in­ter­venção de Pedro em Cas­telo de Vide foi um caso an­to­ló­gico de mau perder e de po­pu­lismo de­ma­gó­gico. Ele, Pedro, bem sabe que a odiada Cons­ti­tuição se mantém como a trin­cheira que de­fende os di­reitos que não são apenas «ad­qui­ridos», como muito se ouve agora dizer, mas são também e so­bre­tudo ine­rentes à dig­ni­dade hu­mana numa so­ci­e­dade ci­vi­li­zada. Contra essa Cons­ti­tuição que a Pedro talvez surja como uma es­pécie de loba que é pre­ciso abater, mul­ti­plicam-se raivas e ranger de dentes. Em sua de­fesa está, de­certo cada vez com mai­ores lu­cidez e em­penho, essa gente que sofre e sabe, o povo.



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