Por terras de Gales

Francisco Mota

Para uns olhos que vi há cinquenta anos (País de Gales)

 

Quando era jovem e inocente, ia para um campo de trabalho social para estudantes, em Inglaterra. Aí aprendi várias coisas: que esses campos de trabalho só serviam para recrutar mão-de-obra para trabalhar na agricultura, que no centro do país havia enormes latifúndios e que se podia ganhar mil escudos por semana (uma barbaridade, na altura) se se trabalhava 12 horas por dia. Com aguentar isto durante um mês conseguia-se mais de quatro contos. No fim do mês, uns voltavam aos seus países e outros, como eu, púnhamos a mochila às costas e íamos conhecer mundo. Nesse tempo, toda a gente parava para dar boleia e ainda não existia o medo ao estranho ou estrangeiro. Desta maneira, meti-me na borda duma estrada, com o polegar no ar e fui apanhando boleias para o Norte.

Eu queria visitar a Ilha de Man, porque apesar de jovenzinho já tinha ouvido falar dos paraísos fiscais e essa ilha, que pertence à coroa britânica, mas não a Inglaterra, é um dos principais. Hoje existirão mais de um milhão de empresas fictícias na ilha, que não pagam impostos, nem ninguém lhes pergunta de onde vem o dinheiro. No domingo 19 de Maio de 2013, um enorme título de primeira página dum grande jornal europeu, dizia: «A EU e o G-20 atacarão os paraísos fiscais». Nestes tempos tristes, poucas coisas me fariam rir tanto como esta notícia. Ou seja, agora os ladrões vão atacar-se a si próprios. Fantástico!

Vi que a ilha de Man ficava bastante ao Norte e então decidi ver o País de Gales e comecei a descer. As boleias levaram-me pela costa Norte, por terras cada vez com menos habitantes, até a uma cujo nome tem 52 letras e que na estação do comboio não cabe numa só linha na parede, pelo que será a única em que o nome vem em duas linhas. A língua galesa passou a dominar a vida diária, apesar das pessoas entenderam quase todas inglês.

Parei numa aldeia, porque só caía uma chuva miudinha e tinha um pequeno porto de pesca. Vi descarregar o peixe e cheirava a mar. Dei uma volta pela terra, não vi quase ninguém, não vi nenhuma peixaria, mas apenas lojas pequeninas que tinham um pouco de tudo, menos carne e peixe. As casas eram bonitinhas e tinham um jardinzinho ou uma horta quase sempre. Pensei em como seria viver ali. Podia cultivar umas batatas, cenouras, nabos, couves, alfaces, teria que habituar-me a beber chá e a comer os scones (bolinhos secos, sem graça nem sabor). Não saberia que comer na maioria das vezes. Fiquei triste com a ideia, mas durante o resto da minha vida nunca deixei de me colocar a mesma pergunta: «como seria se vivesse aqui?». Entrei num bar e perguntei se tinham algum peixe. Só tinham fish and chips, ou seja, filetes congelados dum peixe desconhecido, com batatas também fritas. E o mar estava a vinte metros! Pedi isso e uma caneca de cidra, que sim, tinha um bom sabor a ácido málico, já que é feita de maçãs. O peixe veio escorrendo gordura, não havia pão e só as batatas ajudavam um pouco. Lá comi aquilo e decidi que nunca viveria ali.

Quando tocou descer a costa Oeste, um agente comercial parou e começámos a conversar. Sempre se começava pela chuva, pelo verde intenso dos campos e pelos cordeiros que pastavam livres, sem se importarem com a chuva, porque têm uma lã tão alta que a água e o frio nunca os incomoda. O meu quase-amigo, ao ver que eu falava muito da fama dos borregos galeses, convidou-me a almoçar num restaurante, pequeno, limpo e bem apresentado. Claro que pediu costeletas de borrego e chá. As costeletas lá apareceram, rosadas e apetitosas, mas eram só duas. O pão eram outras duas mini-fatias e havia uma batata e um pouco de verdura cozida ao lado do borrego. Provei um bocadinho da carne e realmente era excelente, com sabores de gordura e erva muito bem proporcionados. Informei disso o meu já-amigo, mas não lhe disse que eu era capaz de comer tudo aquilo em três minutos. Tive que fazer render e no fim beber o chá que estava ali como um morto num concerto dos Rolling Stones. Deixou-me umas milhas mais adiante, com grandes agradecimentos da minha parte. Era um galês simpático e bem disposto. Fui descendo a costa, sempre debaixo de chuva forte e permanente. Fiquei firmemente convencido de que em Gales chove mais de 365 dias por ano. Só se viam os campos verdes e os borregos a pastar. Bastante molhado entrei num albergue de juventude em Dolgellau. Era Setembro e só havia um grupo de miúdos com a professora e eu. Felizmente tinham comida, o que me salvava de comer outra lata de qualquer coisa. Sequei-me e fui para a sala que fazia de refeitório. Os miúdos, uns dez e a moça, estavam noutra mesa maior que a minha. Comi uma sopa de um vegetal horrível, chamado ruibarbo, onde também tinham posto umas rodelas de beterraba. A sopa era má, mas estava quente e caía bem no estômago. Depois umas batatas guisadas com carne, sem gosto nem arte. Definitivamente, no Reino Unido não se come muito bem. Os miúdos, que me pareceram com algum leve grau de descapacidade mental, começaram o olhar para mim, um levantou-se e depois todos, rodearam-me e começaram a fazer dezenas de perguntas sobre mim, o meu país, a minha ocupação, tudo. A moça era alta, delgada, com um cabelo castanho cor de mel, do mel mais escuro, dourado e brilhante que exista. Os olhos, entre o castanho e o verde. De longe sorria para mim. Convidei-a para vir acompanhar-nos, já que agora era ela que estava sozinha. Seria mais ou menos da minha idade, 17 ou 18 anos e sentou-se tímida e leve, como alguma flor que poderia existir em Gales, nascida num intervalo de chuvas. Enquanto eu continuava a responder aos mocinhos, ela olhava-me, sorria e não dizia nada. Eu, quando podia também a olhava e sentia-se aquilo que muito mais tarde se começou a chamar «química» entre pessoas. Além disso, agora estávamos muito perto um do outro. Talvez se tenha assustado, com a crescente intimidade silenciosa que se produzia, ou seria por outra razão, a verdade é que falou para os miúdos dizendo que já era tarde e ia tudo dormir e que já me tinham incomodado bastante. Tentei um último recurso dizendo que não me tinham incomodado e que faziam perguntas muito inteligentes, ao que ela me respondeu com um «thank you». Fiquei desarmado, não me tinha atrevido a propor nada, nem a coisa mais inocente: «quando estiverem a dormir posso convida-la a um chá?» Nem isso! Ficou-me congelada a frase na garganta e não saiu. Via que ia ficar em silêncio. Quando passou por mim, os nossos olhos encontraram-se longamente, agora com um toque triste. Desapareceu. Fiquei sentado esperando algum milagre, mas depois de uma hora, também subi. Dormi mal e acordei cedo. Desci a correr para assistir ao pequeno-almoço deles. Ninguém. Perguntei, e já tinham saído muito cedo.

Zangado comigo, fiz a mochila e comecei a pedir boleias para Londres, para voltar a Portugal. Mas durante a viagem e até hoje continua na minha cabeça uma pergunta: pode a vida mudar por uma palavra ou um silêncio?




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