Comentário

Seis notas sobre um «desígnio nacional»

João Ferreira

1. Ainda a re­cente en­tre­vista de An­tónio José Se­guro à Visão. Uma en­tre­vista que devia ser lida e re­lida por tutti quanti, in­génua ou ma­nho­sa­mente, se afa­digam em fas­ti­di­osos apelos à uni­dade das es­querdas, PS in­cluído. Diz Se­guro que qual­quer fu­turo acordo de go­ver­nação «tem de ser feito em função de po­lí­ticas muito con­cretas, não em função de es­querda ou di­reita». E acres­centa: «Ne­nhum par­tido está ex­cluído de dar o seu con­tri­buto para re­solver os pro­blemas do País. Mas há di­ver­gên­cias! Como é que eu posso fazer um acordo com um par­tido que de­fenda a saída de Por­tugal da Zona Euro?». Logo cla­ri­fi­cando: «um par­tido que de­fenda isto está ex­cluído».

2. Quem não se lembra do euro eri­gido em «grande de­sígnio na­ci­onal» por Gu­terres pri­meiro-mi­nistro? Quem não se lembra da jus­ti­fi­cação para os sa­cri­fí­cios então im­postos aos tra­ba­lha­dores e ao povo por­tu­guês pelo go­verno PS, em nome da en­trada no euro «no pe­lotão da frente»? Então como hoje, era a ne­ces­si­dade de cum­prir metas ar­bi­trá­rias do dé­fice e da dí­vida – em nome da dita con­ver­gência no­minal, con­dição de adesão à moeda única – o que jus­ti­fi­cava as pri­va­ti­za­ções, os cortes nas fun­ções so­ciais do Es­tado, a «mo­de­ração sa­la­rial». Mas então como hoje, os sa­cri­fí­cios se­riam re­den­tores: à con­ver­gência no­minal su­ceder-se-ia a con­ver­gência real. Quem não se lembra ainda das pro­messas de virmos a ter, com o euro, um poder de compra igual ao dos ale­mães?

3. Uma dé­cada trans­cor­rida, o cres­ci­mento acu­mu­lado da nossa eco­nomia foi zero. O en­di­vi­da­mento ex­terno (pú­blico e pri­vado) dis­parou, o de­sem­prego e a pre­ca­ri­e­dade idem, os sa­lá­rios en­co­lheram, apesar dos lu­cros terem cres­cido. Por­tugal, ali­e­nada a sua so­be­rania mo­ne­tária (e, in­di­rec­ta­mente, a so­be­rania or­ça­mental e fiscal), viu acen­tuar-se a sua con­dição de Es­tado de­pen­dente, su­bor­di­nado e pe­ri­fé­rico. A di­ver­gência au­mentou no seio da zona euro. Ao ir­romper a fase mais vi­o­lenta da crise ca­pi­ta­lista, a «so­li­da­ri­e­dade eu­ro­peia» tra­duziu-se na im­po­sição da aus­te­ri­dade e em em­prés­timos a taxas de juro bem su­pe­ri­ores aos custos de re­fi­nan­ci­a­mento nos «mer­cados» dos países que em­prestam. Um bom ne­gócio para al­guns, à custa da san­gria de re­cursos e da ex­plo­ração dos tra­ba­lha­dores e do povo por­tu­guês, para sus­tentar uma dí­vida im­pa­rável que se auto-ali­menta.

4. O con­fronto das mi­rí­ficas pro­messas dos anos 90 com a dura re­a­li­dade da úl­tima dé­cada fez com que a mais des­bra­gada eu­foria desse lugar a uma bem me­dida cau­tela, mesmo por parte de al­guns dos mais ar­rei­gados de­fen­sores do euro. Fal­tando-lhes lata para re­petir as pro­messas e os lou­vores de ou­trora às vir­tudes do Euro, afinam o dis­curso: a ma­nu­tenção no euro é a razão úl­tima de todos os sa­cri­fí­cios, de todos os roubos, de toda a des­truição eco­nó­mica, de toda a de­vas­tação so­cial. E porquê? Porque sem euro, ga­rantem, tudo seria ainda pior. Há, por isso, que manter o euro – e que nos manter no euro – «custe o que custar». In­de­pen­den­te­mente de quanto custe, o des­ti­na­tário da fac­tura é certo.

5. Já assim era aquando da adesão e assim con­tinua a ser: a questão fun­da­mental, mais do que a de­no­mi­nação do ins­tru­mento-moeda é: que po­lí­ticas, que ob­jec­tivos, que in­te­resses serve este ins­tru­mento? Então como hoje, a res­posta fica clara quando olhamos à lista dos «amigos do euro». Cu­ri­o­sa­mente, foi por este nome que ficou co­nhe­cida uma agre­mi­ação fun­dada em 1987, a «As­so­ci­ação para a União Mo­ne­tária Eu­ro­peia». Entre os seus dis­tintos mem­bros-fun­da­dores, contam-se a Airbus, a Al­catel, a Bosch, a Mer­cedes, a Volkswagen, a Fiat, a Si­e­mens, a Total, a Phi­lips e ou­tros que tais. Mas também, ou não fosse este um grande de­sígnio na­ci­onal», a Sonae (Bel­miro de Aze­vedo foi mesmo membro da di­recção da as­so­ci­ação), o BES, o BPI, o BCP (ou bancos que vi­eram mais tarde a in­te­grar estes grupos) e a So­porcel, para re­ferir os exem­plos mais sa­li­entes...

6. Que têm em comum Se­guro e a dí­vida? Ambos são im­pa­gá­veis. Mas uma coisa as ato­ardas de Se­guro não podem es­conder: com uma dí­vida que ul­tra­passa os 130 por cento do PIB, eco­nó­mica e so­ci­al­mente de­vas­tado, Por­tugal terá de se pre­parar para a saída do euro, seja pelo pró­prio pé – cons­ta­tando-se que a sua per­ma­nência na UEM se re­vela in­sus­ten­tável e ra­di­cal­mente in­com­pa­tível com uma po­lí­tica que res­gate o País do rumo de de­pen­dência e de atraso para o qual foi ar­ras­tado – seja em­pur­rado por «par­ceiros» para os quais o que é hoje um «bom ne­gócio» se venha a re­velar no fu­turo um fardo de­ma­siado pe­sado...

 



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