O país onde chovia ao contrário – «Que Importa a Fúria do Mar», de Ana Margarida de Carvalho

Domingos Lobo

 

Afinal a literatura portuguesa contemporânea, a literatura feita pelos mais jovens escribas deste burgo à deriva, também pode debruçar-se, sem constrangimentos visíveis, sobre o nosso passado recente, quer dizer, sobre o período fascista (cujo, por muitas voltas que a semântica procrie, afinal existiu) e desse investimento surtir obra enxuta e, no processo narrativo, algo inesperado. Inesperado pelo rigor da sintaxe, pela segurança na utilização da língua, dos tempos e do fluxo discursivos, obra madura, dir-se-ia, a rasgar espaço no desolado panorama da nossa mais recente literatura, sobretudo quando o livro em causa é estreia, nas lides romanescas, da autora.

Que Importa a Fúria do Mar, de Ana Margarida de Carvalho, texto finalista do Prémio Leya de 2012 e agora dado à estampa pela Teorema, fala-nos de uma jornalista e de um dos últimos sobreviventes da Revolta de 18 de Janeiro de 1934, na Marinha Grande. Um velho resistente e uma jornalista; o dever de contar, de perscrutar esse tenebroso passado, e a memória de quem viveu a deportação, as sevícias, a fome, a malária, a tortura da frigideira, durante 10 anos, nesse campo da morte lenta, nesse inferno aberto ao sol da ilha de Santiago, no irónico lugar de Chão Bom, arquipélago de Cabo Verde. Campo de Concentração, mandado construir por Oliveira Salazar, para aí encarcerar, da forma mais desumana, arbitrária e ignóbil, os revoltosos da Marinha Grande e os marinheiros dos navios da armada portuguesa Dão, Bartolomeu Dias e Afonso de Albuquerque.

Inaugurado em 29 de Outubro de 1936, o Campo de Concentração do Tarrafal tornar-se-ia o primeiro espaço de uma sinistra série de campos de morte, que o nazi-fascismo europeu espalharia pelos territórios que dominava. Neste particular, os ditadores Salazar e Franco foram pioneiros, ensinando a Hitler os processos de extermínio e os caminhos do terror.

Que Importa a Fúria do Mar, é um livro raro. Raro não tanto pelo que conta – não que, infelizmente, abundem os títulos que nos falam sobre esse período da nossa história –, mas pelo modo como, de forma muito contida, mas vibrante, conta. Temos, assim, dois modos distintos de contar, dois olhares sobre um mesmo território, os traços idiossincráticos que lhes serão comuns, mas que vivem, ou viveram de forma diferente, em universos sociais diversos; duas personagens que percorrem tempos e circunstâncias opostas, que se encontram e distanciam mas que, ao mesmo tempo, conseguem reflectir sobre a estranha particularidade do ser português, desses anacrónicos, indeléveis traços da nossa memória colectiva, que afinal está viva, que afinal existiu, que afinal se revela de forma por vezes trágica, outras de um modo brando, subliminar – o passado e o presente em busca de sinais, de entendimento, de justificação para a barbárie: Joaquim, o sobrevivente do terror; Eugénia, a jornalista, também ela presa nos seus labirintos, aos pesadelos dos nascituros que as tias conservavam em formol, no abandono do marido, em permanente conflito com os seus fantasma; em busca das respostas que tardam, lentas, dado que a memória do velho tarrafalista é um alçapão de assombros povoada de mortos, de cartas de amor que a destinatária leu de raspão e deixou a um canto para as tarefas da traça e do esquecimento (O sangue que Joaquim tinha suado para mandar janela fora, numa madrugada nevoenta e húmida, um molho de cartas de amor); o retrato de Luísa guardado durante anos no cós das calças de degredado – essa memória da amada que o haveria de resgatar, com vida, do inferno da frigideira, das tarefas diárias de despejar no mar os dejectos, de assistir à morte sobressaltada, de febres e sevícias, do amigo Francisco, camarada das andanças revoltosas, dos fornos do vidro da Marinha Grande.

Ana Margarida de Carvalho narra, com o rigor que a ficção permite e amplia, através do olhar de Joaquim da Cruz, a saga dos 152 antifascistas que foram, a mando de Salazar, estrear essa «gaiola a céu aberto», essa nave do terror perdida algures numa ilha do Atlântico onde quase nunca chove ou, se chove, ao contrário do que sabemos sobre as propriedades da água, é para trazer as febres, a malária, a pestilência e a morte. Um território em que a chuva tem efeitos contrários: traz atrelada a morte em vez de contribuir para que vida se refaça e renasça. Tempos aziagos, esses. E um gato a lançar as pontes, as traves que estabelecem os indeléveis fios do entendimento, dos afectos entre quem ouve, a jornalista, e um velho anarquista que vai abrindo, esparramada em sangue ainda vivo, em ferida, os lanhos da memória: Ali, naquela aridez, onde nem uma semente de trigo almeja sonhar a luz do dia ou a indulgência de uma gota, germinava já a esperança nas cabeças e nos corpos onde o sangue corria veloz. Poucos ultrapassavam a barreira dos 25 anos – a esperança latejava dentro deles, apesar da desolação exterior. Um rectângulo de duzentos passos, circunscrito por uma vedação de arame farpado de dois metros de altura. Menos do que uma jaula, uma gaiola a céu aberto, sem sombras, árvores esparsas e raquíticas, ressequidas pela salinização das terras, e doze barracas ou, antes, doze tocas de lona para albergarem 152 homens.

Muitas leituras, muitos livros, muitos versos alheios trazidos, em coro polifónico, para esta prosa madura, tão ágil de rumores de língua a refazer-se, a sair lavada dos limos em que a querem sossegada e sem alardes, sepulta e anulada, servil. A prosa de Ana Margarida de Carvalho, assim expressa, neste rumor sereno de contar os dias da vergonha, cresce e transfigura-se, fala em contínuo fluxo e refluxo, é inventiva e contagiante; vertigem que magoa de tão lesta e exaltante, a contar o fundo lodoso desses dias, desses anos de sofrimento real que a ficção poderosa da autora reverdece e traz a terreiro em tempo certo. Afinal, esse campo de torturas baloiçante numa ilha à deriva, sal e mar e sol, construído às ordens do ditador Salazar, fascista com poiso em S. Bento, existiu mesmo. Esse beato hipócrita, rodeado de mulheres-morcego, de sinistras e submissas criaturas, que engendrava campos de tortura e morte, existiu. As masmorras, a PIDE, as torturas, os degredos, o Tarrafal, as sezões, tosses, lábios secos e infectados, a pestilência daquele ar, a frigideira, existiram mesmo, não eram derivantes semânticas; retórica para assustar infantes; pragas lançadas ao vento para aquietar os deuses. Está tudo neste livro, em prosa por vezes mágica, perpassada por uma poética que inventa e reinventa a metáfora, que transfigura esse lídimo acervo da fala que nos é comum.

E estavam, todas elas, debaixo do mesmo susto, do mesmo chapéu, num império onde chovia ao contrário para ensopar primeiro os que andam mais próximos da terra, e criar-lhes raízes de resignação, húmus nos pés de submissão. E infiltrações nos ossos.

 



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