Então e agora

Correia da Fonseca

Foi, ao princípio da noite do passado sábado, um documentário acerca dos anos que a França viveu sob ocupação nazi, isto é, entre 1940 e 1944. Na RTP2, naturalmente, enquanto a RTP1 nos embalava com um Benfica-Sporting quase de faz-de-conta, pois bem se sabe que o público do principal canal da operadora estatal de TV não pode ser incomodado com programas que abordem assuntos sérios ou lhes ensinem coisas que mais vale que para sempre ignorem. Foi, pois, «A História Íntima da França Sob a Ocupação Nazi», de Isabelle Clarke e Daniel Costelle, e a dada altura vimos imagens de uma grande reunião de oficiais nazis realizada exactamente em Paris para assim ficar acentuada, mais uma vez, a humilhação dos vencidos. Usava da palavra um dirigente que mais tarde seria condenado em Nuremberga por crimes de guerra. E, num cenário dominado por grandes panos com a cruz suástica, berrava ele, entre outras coisas: «Estamos aqui para destruir a Revolução de 1789!» Poucas vezes uma breve frase terá constituído uma síntese tão certeira de um momento da História. Porque na emergência do nazismo, no afinal efémero triunfo de Hitler, no incêndio que abrasou a Europa e acabou por se alargar aos quatro cantos do mundo, esteve decerto o sonho de um III Reich que duraria mil anos, esteve a amargura da derrota de 14, esteve a prosápia um pouco imbecil do «herrenvolk», o povo dos senhores, mas esteve sobretudo o objectivo de destruir essa sequência histórica de 1789 que foi e é o movimento comunista internacional. Por isso a Alemanha nazi só enceta a sua missão fundamental quando em Junho de 41 invade a URSS. Pois ali se prolongava a libertação iniciada com a Revolução Francesa, como aliás era assumido pelas três datas que encimavam o palco do Teatro Bolshoi: 1789, 1871 e 1917.

Um sabor actual

A França foi libertada há cerca de setenta anos, o mundo mudou muito, a chamada Guerra Fria terminou com a derrota da União Soviética, mas a luta de classes quer à escala transnacional quer nos diversos quadros nacionais não enfraqueceu até porque, ao contrário do aventado por uma espécie de boato tonto que entretanto se dissipou, a História prossegue. Para o capitalismo internacional não se trata hoje de promover e financiar a invasão de alguma União Soviética, mas trata-se, sim, de consolidar e eventualmente reforçar os seus poderes, de providenciar a satisfação da sua sempre crescente e inesgotável gula, de intensificar a exploração dos povos em geral e das classes trabalhadoras em especial. E aqui, na Europa, a avaliar pelos mais óbvios e significativos sinais que nos chegam, é de novo a Alemanha que comanda esse conjunto de hostilidades desencadeadas contra as populações, contra os direitos de quem trabalha, sobretudo contra o projecto de substituir o actual modelo social pela construção de uma sociedade justa e de rosto verdadeiramente humano. Diz-se que os alemães olham os europeus do Sul com desagrado porque os consideram preguiçosos, mal governados e parasitários. É possível, é mesmo provável. Mas talvez não seja excessivo, nem quimérico, nem desvairado, admitir que por debaixo dessa caracterização que sirva um pouco de cobertura está a memória, ainda que não formulada com nitidez, de que os europeus do Sul são gente que faz revoluções ou mutações políticas revolucionantes. Os de França, é claro. Os da República Espanhola que só o crime franquista derrubou. Os do Portugal dos cravos. Os gregos que resistiram em guerra civil no pós-guerra. E o capitalismo não esquece nem perdoa. Por isso as palavras nazis recordadas pelo documentário francês que a RTP2 transmitiu adquirem agora uma espécie de sabor actual ainda que não contaminado pela peculiar bestialidade nazi. «Estamos aqui para destruir a Revolução de 1789!», disse ele, entendendo-se naturalmente que se tratava de destruir a sequência de 89 na Europa de 1942. Avaliemos os ventos tóxicos que nos chegam de Berlim (ou de Bruxelas, ou de quase toda a Europa central já de facto dominada, «ocupada», pela Alemanha) e reflictamos se não é possível encontrar neles um eco das palavras proferidas em Paris, há perto de setenta anos, por um ocupante nazi. 



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