Craques
Ligar o televisor é, como se sabe, um acto que implica riscos: olhamos e ouvimos o que a TV nos traz e dificilmente escapamos a que, a breve trecho, a indignação nos mordisque o sistema nervoso, a que sintamos náuseas, a que a acidez gástrica suba em flecha. Não será excessivo dizer que, de um modo geral, a televisão portuguesa faz mal à saúde. Nem sempre, porém: a condição de telespectador português também permite alegrias, e recentemente pude contabilizar dois momentos em isso aconteceu. Um deles ocorreu durante o programa «Política Mesmo» da TVI24. Estavam em estúdio, além de Paulo Magalhães, o jornalista que habitualmente apresenta o programa e modera os debates quando os haja, António Capucho, «histórico» elemento do PSD com um vasto currículo e em tempos recentes muito crítico do Governo Passos Coelho, e António Filipe, o deputado do PCP. A dada altura, falou-se da trapalhada que se instalou quanto às candidaturas de presidentes de câmaras que se propõem candidatar-se à presidência de outros municípios, e eis que António Filipe arrancou para uma breve mas brilhantíssima lição jurídica sobre a matéria em causa: claro, nítido, não apenas esclareceu o ponto central da questão mas também, de caminho, provou a responsabilidade da bancada parlamentar do PS pela manutenção de alguma ambiguidade no texto legal em discussão. Por mim, ouvia-o, olhava-o, e como que explodia dentro de mim um grande orgulho por aquele homem evidentemente notável que é meu camarada.
Um riso sob suspeita
O outro momento reconfortante que a TV me proporcionou recentemente teve um tom diferente mas não me gratificou com um prazer menor: devo-o, devemo-lo todos nós, ao deputado Bruno Dias que, no decurso de uma sessão em comissão parlamentar, usou de uma ironia de irresistível efeito para, de Borda d’Agua em punho, reduzir o aliás já esfrangalhado prestígio do ministro Vítor Gaspar à dimensão ridícula que lhe é adequada. O êxito de Bruno Dias foi tal que, nos dias seguintes, a sua intervenção foi repetidamente transmitida em diversos canais da TV portuguesa como sendo o que de facto foi: um episódio breve mas notável da vida parlamentar com lugar já assegurado na «petite histoire» da actual sessão Assembleia da República. Note-se que não é propriamente vulgar que estações portuguesas de televisão confluam para dar destaque a intervenções de um deputado comunista: por força da sua opção política, comunista, mesmo que deputado, está em princípio muito mais condenado ao boicote do que ao implícito aplauso, a regra é essa e assim é que os comandos gostam. Mas o mérito de Bruno Dias teve ainda um outro ângulo: o riso pouco ou nada dominado que a sua intervenção suscitou no ministro da Economia permite a suspeita de que a Álvaro Santos Pereira não desagradou, antes pelo contrário, que o ministro das Finanças tivesse sido posto ali a ridículo. É certo que o sucesso de Bruno Dias foi praticamente generalizado a todos ou quase todos os presentes, mas as gargalhadas mal reprimidas de Álvaro Santos Pereira ganharam um destaque especial. Diz-se por aí que no seio do actual Governo há ministros que já não se falam, não se sabendo ao certo de quem se trata. O inegável prazer com que Santos Pereira ouviu Bruno Dias pode porventura constituir uma ajuda para que adivinhemos quem não fala a quem, e também constituir uma contribuição para que, qualquer dia, um deles largue a pasta. Ou ambos, mais todos os restantes, se possível. De qualquer modo, o que mais quero e devo salientar é que António Filipe e Bruno Dias evidenciaram nas duas intervenções aqui sumariamente descritas as suas capacidades de comunicação, diversas entre si mas ambas eficazes. Utilizando uma palavra do léxico desportivo, bem se pode dizer que, cada qual no seu estilo, se houveram como verdadeiros craques. Porque a eficaz utilização dos media é, no quadro da batalha ideológica permanentemente em curso, um factor fundamentalíssimo e por vezes descurado, estas duas presenças no ecrã do meu televisor reforçaram-me o sempre escasso dividendo de alegria quanto a estas matérias. O que não é pouco para um telespectador português.