Exaltação da coerência e da coragem
Abriu no sábado a grande exposição evocativa da vida, pensamento e luta de Álvaro Cunhal, que estará patente até ao dia 2 de Junho na Sala do Risco do Pátio da Galé, no Terreiro do Paço. Foi precisamente neste espaço magnífico, valorizado pelo forte Sol que brilhava, que teve lugar no sábado à tarde a sessão inaugural da exposição, que contou com a presença de diversos dirigentes do Partido, de camaradas que com Álvaro Cunhal travaram combates na clandestinidade e no período revolucionário, de centenas de militantes do PCP e de muitos outros que, não o sendo, fizeram questão de homenagear aquela que é uma figura ímpar da história de Portugal e do século XX.
O Secretário-geral do Partido, que fez na ocasião uma breve mas vibrante intervenção (que transcrevemos na íntegra nestas páginas), considerou a exposição um «hino à força criadora dos homens, de exaltação da vida vivida de cabeça erguida, feita de verticalidade, inteireza de carácter, de coerência e coragem, de busca incessante dos caminhos da vitória sobre a injustiça e as desigualdades, e na procura da concretização desse sonho milenar da construção de uma sociedade liberta da exploração do homem pelo outro homem». Antes tinha intervido Mário Moreira, arquitecto e membro da Comissão Organizadora da exposição.
Entre as duas intervenções, os cantores Samuel e Luísa Basto (acompanhados pelo pianista Nuno Tavares) interpretaram algumas canções como que percorrendo a própria vida de Álvaro Cunhal, que se confunde com a luta do povo português pela liberdade, a democracia, a independência e o socialismo: versões de José Afonso («Epígrafe para a Arte de Furtar» ou «Tinha uma Sala Mal Iluminada»); originais de Samuel («Llanto para Alfonso Sastre y todos», a partir de um poema de Ary dos Santos) e de Luísa Basto («Fui hoje ao Alentejo» ou «Abril Novo», cujo poema é igualmente de Ary dos Santos).
Terminada a sessão, centenas de pessoas fizeram questão de visitar a exposição logo no primeiro dia.
Exposição evocativa de Álvaro Cunhal
patente no Pátio da Galé, em Lisboa
Caberá numa exposição, por maior e mais completa que seja, e esta é, uma vida tão intensamente vivida como foi a de Álvaro Cunhal, nas suas múltiplas dimensões? A resposta é evidentemente negativa, mas tal não se deve a qualquer insuficiência da mostra inaugurada no sábado, antes à grandeza da personalidade evocada, cujo percurso e reflexão encerram em si mesmos um valor, uma complexidade e uma importância impossíveis de catalogar ou resumir.
Esta constatação em nada reduz a qualidade da exposição «Vida, pensamento e luta: exemplo que se projecta na actualidade e no futuro», cuja concepção e conteúdo contribuem decisivamente para o conhecimento e compreensão da vida e da obra daquele que é, no século XX e na passagem para o século XXI, a personalidade que em Portugal mais se destacou na luta pelos valores da emancipação social e humana. Uma vida e uma obra multifacetadas que servem de inspiração a todos quantos, hoje, travam o mesmo combate contra a exploração e as desigualdades, por uma sociedade mais justa e solidária – o socialismo e o comunismo.
A primeira parte da exposição avança de forma cronológica, acompanhando através de texto, imagem e materiais diversos o percurso de Álvaro Cunhal e o contexto das diversas épocas. Se nos primeiros anos, da infância e da juventude, percurso e contexto correm separados, à medida que a exposição avança – e com ela o tempo histórico a que se reporta – um e outro passam a ser inseparáveis, como inseparável foi a actividade revolucionária e a obra teórica de Álvaro Cunhal (e do PCP) do desenrolar dos próprios acontecimentos.
Infância e juventude
Dos primeiros anos de Álvaro Cunhal, em Coimbra, onde nasceu, e depois em Seia e em Lisboa, a exposição releva o ambiente familiar afectuoso, apesar das tragédias ocorridas (morte de uma irmã, aos sete anos, e de um irmão, com pouco mais de 20), as dificuldades de sustento sentidas e a natural alegria de viver. O papel do pai, Avelino, na formação de Álvaro Cunhal é também salientado numa frase do próprio: «foi um verdadeiro pai. Pela ternura, pela compreensão, pela generosidade, pelo apoio permanente aos filhos nas horas boas e nas horas más e pelo exemplo de honestidade e isenção.» Uma carteira escolar do Liceu Camões, do tempo em que Álvaro Cunhal lá estudou, uma ficha de inscrição do PCP dos anos 20 e traduções de clássicos do marxismo-leninismo da mesma época são alguns dos materiais expostos nesta primeira parte da exposição.
O núcleo seguinte, dedicado aos anos 1929-1940, retrata a juventude de Álvaro Cunhal e o início da sua actividade revolucionária: a adesão ao Partido em 1931, na Faculdade de Direito; a eleição para o Senado Universitário em representação dos estudantes; as crescentes responsabilidades partidárias, que o levam a Espanha, em 1936, onde assiste ao início da Guerra Civil e participa na luta do povo espanhol em defesa da República, e a eleição para o Comité Central, no mesmo ano; a primeira prisão e as torturas sofridas; a tese sobre o aborto. Apontamentos manuscritos de Álvaro Cunhal e originais dos jornais «O Diabo» e «O Sol Nascente», para os quais escreveu artigos nessa época, acompanham este núcleo.
Luta clandestina
Com o início da década de 40 do século passado e o processo de reorganização do PCP, em que teve um papel decisivo, a vida de Álvaro Cunhal passa a confundir-se com a própria história do País, e a exposição mostra-o: a construção do Partido e das suas organizações, a distribuição do Avante!, o III e o IV congressos são alguns dos aspectos destacados no terceiro núcleo, a par das lutas operárias da construção e alargamento da unidade antifascista, já com a classe operária a assumir o papel dirigente, e do restabelecimento da ligação do PCP com o Movimento Comunista Internacional.
Originais dactilografados dos relatórios de Álvaro Cunhal ao III Congresso do PCP (realizado em 1943) e brochuras de textos emblemáticos do Partido, como «A Célula de Empresa», «Se Fores Preso, Camarada...» ou «O Partido Comunista, os Católicos e a Igreja» são alguns dos interessantes materiais expostos – a par da reconstituição escultórica de uma reunião clandestina.
Um outro núcleo é todo dedicado ao período em que Álvaro Cunhal esteve preso, entre 1949 e o início de 1960. A chamar a atenção do visitante está, desde logo, a reconstituição da cela em que permaneceu largos anos na Penitenciária de Lisboa, muitos dos quais em rigoroso isolamento: um espaço exíguo, de dois metros por quatro, onde nunca entrava o Sol e constantemente vigiado. Ao lado, num ecrã, passa um depoimento de Sofia Ferreira sobre a prisão na casa clandestina do Luso.
A corajosa defesa de Álvaro Cunhal em tribunal e a ampla campanha pela sua libertação são aspectos salientes na exposição, que revela materiais originais que sustentaram essa campanha, em Portugal como no mundo, entre os quais se encontra um minúsculo emblema (de que só se conhece um exemplar). Os anos de prisão foram igualmente anos de intenso labor literário e plástico, estando patentes originais de alguns dos famosos «Desenhos da Prisão», o manuscrito e a primeira edição da tradução de «O Rei Lear», assinado sob o pseudónimo «Maria Manuela Serra», bem como os cadernos da prisão.
Rumo à Vitória
O quinto núcleo, compreendendo o período entre 1960 e 1974, realça a fuga de Peniche e toda a actividade política de Álvaro Cunhal (que seria eleito Secretário-geral do PCP em Março de 1961) no combate ao desvio de direita no Partido e no retomar da via do levantamento nacional para o derrubamento do fascismo. Os aspectos relacionados com o VI Congresso do Partido – que definiu os oito objectivos centrais da Revolução Democrática e Nacional, cujo acerto Abril haveria de comprovar na prática – são particularmente destacados, exibindo-se as edições clandestinas do Programa e Estatudos aprovados, diversas intervenções e saudações de partidos comunistas e operários, bem como um galhardete evocativo do Congresso.
Neste núcleo merecem especial interesse os excertos de uma intervenção de Álvaro Cunhal numa reunião do Partido realizada nos anos 60, que é possível escutar através de auriculares, e as edições clandestinas de diversas obras escritas nesses anos.
O 25 de Abril operou uma viragem radical na vida do País e isso não passa ao lado da exposição, que sofre ela própria uma transformação a partir desse momento. A assinalar a Revolução está uma grande tela onde se projecta um filme sobre o dia 25 de Abril de 1974 e sobre a chegada a Portugal de Álvaro Cunhal, cinco dias depois. No texto destaca-se o papel do PCP e de Álvaro Cunhal, o seu principal dirigente, nas conquistas revolucionárias de Abril e na sua defesa.
Dirigente comunista, intelectual e artista
Os últimos núcleos da exposição dão relevo ao papel de Álvaro Cunhal nos últimos anos da sua vida, quer enquanto dirigente comunista de dimensão internacional quer enquanto escritor e artista plástico. Para além do texto, podemos encontrar aqui edições de discursos em congressos, conferências e debates, relativos aos mais variados temas, traduções de romances e novelas em diversas línguas, originais das suas pinturas e ofertas de dirigentes e partidos comunistas e revolucionários internacionais ou de personalidades portuguesas das mais variadas áreas: um boné militar da frota do Mar Negro (da URSS), um pente de aço feito dos destroços de um avião norte-americano abatido no Vietname, um postal assinado por Samora Machel ou uma caixa de madeira esculpida dada por Fidel Castro são algumas das «preciosidades» patentes, a par de uma camisola assinada pelo futebolista Eusébio ou os livros e discos autografados por escritores como José Saramago, Ary dos Santos, Oscar Niemeyer ou Oscar Lopes.
Os últimos painéis destacam a recusa de privilégios pessoais, que sempre norteou a vida de Álvaro Cunhal, e a actualidade e validade do seu pensamento, a que a vida deu razão.
Pelos textos e imagens impressos nos painéis, pelos materiais expostos, pelas recriações escultóricas de situações essenciais da história da luta dos comunistas portugueses e, sobretudo, pelo exemplo de coragem, firmeza e generosidade presente em toda a vida de Álvaro Cunhal e que dela perpassa, é fundamental visitar a exposição. E levar um amigo.