Viagem adiada

Francisco Mota

     A todos os que trabalharam e não vêem recompensa


Finalmente, Carlos ia reformar-se depois de 32 anos de trabalho em empresas. Tinha 66 anos. Há um ano que esperava a chegada da carta da Segurança Social, com as contas do que ia cobrar. Com ajuda de alguns amigos, peritos nestes assuntos, sabia que não ia receber uma fortuna, mas sim alguma coisa decente. Como levava uns tempos sem sair de casa, propôs à sua companheira, Mariana, que com os atrasos da reforma fossem dar uma volta por Portugal, comendo em sítios onde há uns anos não iam. E assim se decidiram.

Começariam pela Cova (Gala), terra pequena em frente à Figueira da Foz, do outro lado do Mondego, onde no Carrossel se podia comer, de diferentes maneiras, os «samos» (tripas de bacalhau), sendo quase o único sítio onde encontrar esta maravilha. Os outros mais próximos estão na Catalunha, ao Norte de Barcelona. Nessa tarde, esqueceriam o leitão da Bairrada e a chanfana. Iriam directos ao Mercantel em Aveiro comer um arroz de línguas de bacalhau com grelos, com umas enguias fritas de entrada. Aí dormiriam. No dia seguinte, rodariam uns bons quilómetros até Santa Marta de Portuzelo, muito perto de Viana do Castelo, onde no Camelo escolheriam um cabrito assado, uma cabidela de galo verdadeiro, ou outro dos pratos que faz desse restaurante lugar de peregrinação laica. Daí fariam uma incursão em terras galegas, até uma pequena aldeia do lado Norte da Ria de Vigo. Aí está um restaurante sem letreiros, a Casa Rios, em Domaio, para comer uma empanada de mini choquinhos da ria, com a sua tinta, que é algo inesquecível. Além disso, aceitariam as ordens da casa, porque tudo é fantástico e a preços bastante bons.

No dia seguinte apanhariam a autovia grátis das Rias Baixas e, pelo caminho, decidiriam se entrariam em Chaves, ver amigos e comer no inevitável Aprígio, ou se seguiriam adiante até à saída para Vinhais, porque era boa altura para comer umas cascas (feijão seco em vagem, onde se come tudo) apaladadas com o contundente fumeiro daquelas terras. Se fizessem isso, a tarde ia ser pesada, mas teriam que chegar pelo menos a Miranda do Douro, para dar uma volta pela pequena cidade e depois rumar a Mogadouro, até à Lareira, que tem a vantagem de ter uma pensão aceitável, em cima de um restaurante onde a posta do planalto mirandês, grelhada numa enorme lareira, que também aquece as pessoas, dá o melhor resultado duma carne única de sabor, com o sumo a escorregar de dentro da posta. Como o dono foi emigrante há uns quarenta anos na Suíça, as batatas que acompanham são «batatas suíças», que são raladas em pequenos fios e depois postas numa frigideira com um pouco de azeite e aproveitando todo o amido da batata, vêm para a mesa como se de uma tortilha espanhola se tratasse. Mas são só batatas fritas. Excelentes, está claro.

Na manhã seguinte, depois de ver a estátua de Trindade Coelho, natural da terra, e de dar uma olhadela à casa onde viveu o corajoso companheiro e veterinário Pardal, voz comprometida daquelas terras solitárias e duras, apontaríamos decididos para Gouveia, por estradas estreitas ou outras melhores que eram grátis, mas agora não, rever o grande restaurante da Serra da Estrela, o Júlio. Aí esperavam ver um homem também com as ideias claras sobre cozinha e vida, sobre luta e submissão e de grande sorriso aberto. Falaríamos do nosso querido Vasquez Montalban e comeríamos umas feijocas, ou uns enchidos beirões, umas morcelas assadas, uns cogumelos, um cabrito com arroz de carqueja e mais o que aquela família nos mandasse. O tinto ajudaria a baixar o festim.

Estava tudo preparado, para arrancar, cheios de alegria e um brilhozinho nos olhos. Foi então que chegou a carta da Segurança Social, que Carlos abriu, nervoso e esperançado. Em resumo a carta informava que a sua pensão seria de 256 euros por mês. Um grande silêncio e um céu cinzento apareceu na casa. Leu várias vezes a carta, até que, na certeza de que recorrer aos tribunais só iria atrasar o começo da retribuição e das pensões já vencidas, chegou à conclusão, com a Mariana, de que a bela viagem e o início duma reforma digna acabava de desaparecer. Lembrou-se que a sua reforma era inferior à do seu pai, já falecido. O seu pai só tinha a quarta classe e ele era engenheiro. E como a cabeça humana é capaz de ver ligações entre coisas sem aparente conexão, disse à Mariana: «hoje faço eu o jantar». Meteu-se na cozinha e cortou as partes menos nobres dum bacalhau, as badanas, o rabo, as postas baixinhas que estão a seguir, o osso da gola e pôs tudo em água quente, para um demolhado rápido. Cortou muito fininha uma cebola, juntou um pimento seco e um pouco de conserva de tomate que trazia da terra onde tinha nascido. Quando chegou o momento de cozinhar fez um refogado com a cebola, alhos descascados e azeite. Muito lentamente. Acrescentou o pimento para que se fosse hidratando e quando estava tudo pronto deitou arroz, para que durante uns poucos minutos colhesse sabor do refogado. Depois acrescentou os bocados do bacalhau e água. Não deitou sal. O bacalhau estaria salgado. Ferveu quase uma meia hora e foi provando para ver o ponto de sal. Acrescentou algum. Um raminho de salsa daria um toque fresco ao prato. Este arroz de bacalhau não deve ficar muito aguado, nem muito seco.

Sentados à mesa serviram-se do arroz de ossos de bacalhau, que conservava o sabor ao peixe e então Carlos disse a Mariana: «era isto que o meu pai comia quando tinha 10 ou 15 anos, com a família da sua tia onde foi criado. Era gente pobre e eram os anos 30 de quase há um século. Podes imaginar as dificuldades que viviam se eu te disser que este arroz era um jantar de festa, porque só se comia na noite de Natal. Parece que querem que esse tempo volte».



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