Lição de dignidade

Anabela Fino

A morte do presidente venezuelano Hugo Chávez Frias, não sendo uma surpresa dada a gravidade do seu estado de saúde, nem por isso deixou de causar uma vaga de emoções em todo o mundo.

A notícia correu célere ao final do dia de terça-feira, 5, e logo os comentadores de serviço começaram a debitar opiniões e prognósticos quanto ao futuro da Venezuela.

A par de comentários mais ou menos espúrios sobre o «carisma» de Chávez, bem reveladores da incapacidade de quem convive sem problemas com a hipocrisia dominante em entender – quanto mais aceitar! – a frontalidade de quem não hesita em pôr nome aos bois, como soe dizer-se, assistiu-se ao multiplicar de votos para que o período de transição, que muitos auguram poder ser «pouco pacífico» e «muito problemático», enverede pelo caminho da «democracia», da «liberdade» e do «respeito pelos direitos humanos».

De tanto repetido o discurso tresanda a falso, sobretudo nas chamadas democracias ocidentais onde de forma galopante, desde a derrota do socialismo nos países de Leste, se esboroam direitos civilizacionais conquistados em duras lutas contra o capital ao longo de gerações. Talvez tenha sido por isso que a primeira imagem que me ocorreu ao escutar tais comentários na noite de anteontem tenha sido a daquela mulher que não conheço e que no último fim-de-semana me entrou em casa através da televisão, contando a sua história – e de quantos mais? – de arrepiar.

Na casa dos quarenta, cabelo claro, com o rosto macerado a denotar a depressão de que não conseguiu escapar, desempregada de longa duração, a sobreviver com a ajuda da família, esta mulher recebeu em casa uma prova inequívoca da iniquidade deste Governo que está a atirar o País e os portugueses para a miséria mais abjecta: um cheque no valor de 8,10€ (oito euros e dez cêntimos!) que é suposto ser aquilo a que tem direito como rendimento social de inserção.

Contendo as lágrimas mas com voz calma, esta mulher contou a dor que sentiu ao receber tal migalha das migalhas com que o Governo pretende fazer crer que combate a exclusão social, e como fez da profunda mágoa força para pedir à família dinheiro para, em carta registada, enviar ao Presidente da República o cheque de oito euros e dez cêntimos como contributo pessoal para resolver a crise económica do País e resgate da sua dignidade.

Mais do que um murro no estômago, esta história é uma lição de esperança e um incentivo à luta organizada de quantos como ela são ofendidos e humilhados por essas democracias que dão aos povos o direito e a liberdade de morrer na indigência.

Esta história é também exemplar para se perceber o que Hugo Chávez – dirigente de um governo que reduziu a metade a mortalidade infantil na Venezuela, que disponibiliza quase metade do orçamento nacional para políticas sociais, que reduziu de forma drástica o analfabetismo – quis dizer na que terá sido a sua última mensagem ao país, admitindo já a possibilidade de não resistir à doença que o vitimou: Habemos pátria. Habemos povo. No se equivoquen.

Lá como cá, não se enganem. Nós também temos Pátria, também temos Povo.



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