Nova Lei do Arrendamento

Governo não quis ouvir os inquilinos

Depois de ter sido promulgada pelo Presidente da República, no dia 12 de Novembro entrou em vigor a nova Lei do Arrendamento Urbano. Os principais visados, cerca de 255 mil famílias, são aqueles que têm contratos anteriores a 1990. Entretanto, os proprietários já começaram a enviar cartas a todos os inquilinos, de modo a iniciar um novo processo de negociação das rendas antigas. A não resposta, num prazo de 30 dias, poderá significar a aceitação do que nela está inscrito: o aumento da renda.

Acontece que o inquilino, se tiver mais de 65 anos de idade ou 60 por cento de incapacidade, e apresentar carência económica, não é obrigado a mudar para o novo regime, mantendo-se com um contrato por tempo indeterminado, e evitando que venha para a «rua» no prazo de cinco anos. Uma situação que os proprietários tentam esconder.

Fomos falar com Romão Lavadinho, presidente da Associação dos Inquilinos Lisbonenses, instituição fundada em 1924, que «já no período do fascismo lutou em defesa dos interesses dos inquilinos». Ao Avante!, salientou que a Lei do Executivo PSD/CDS visa, essencialmente, despejar os inquilinos com rendas mais antigas e não dinamizar o mercado.

Este é um retrocesso civilizacional de 150 anos

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Quando a nova Lei do Arrendamento foi anunciada pelo Governo desde logo mereceu fortes críticas da AIL. Depois de aprovada, a Associação chegou mesmo a pedir a fiscalização da constitucionalidade de algumas normas da Lei. Podia falar-nos um pouco deste processo?

Em Setembro de 2011, pouco tempo depois das eleições legislativas e depois de a ministra da Agricultura, Mar, Ambiente e Ordenamento do Território, Assunção Cristas, ter tomado posse, a AIL foi convocada para dar a sua opinião sobre um ante-projecto que o Governo tinha em vista; nessa ocasião, dissemos aquilo que pensávamos sobre a lei da altura – a lei n.º 6/2006, que esteve em vigor até entrar a nova Lei, a 14 de Agosto. Paralelamente, falámos com os senhores da troika (FMI/BCE/UE), a quem expusemos uma série de considerações sobre o que em Portugal era preciso ter em conta e precaver.

Que problemas lhes colocaram?

Dissemos ao Governo que não devia alterar os contratos anteriores a 1990, uma vez que a lei de 2006 já permite, por exemplo, não haver transições. A lei antiga dizia que só era possível transferir o arrendamento aos filhos desde que tivessem até 26 anos e estivessem ainda a estudar. Ora, em princípio, um casal com 75 anos já não tem filhos com essa idade, e mesmo que tenha é uma excepção. Portanto, no geral, já não havia transições do arrendamento.

Relativamente aos contratos anteriores a 1990, estamos a falar de quantas pessoas e de que camada etária?

Entre 2001 e 2011 desapareceram 165 mil destes contratos, quando existiam cerca de 420 mil. Constatando estes números, dissemos à ministra Assunção Cristas que não podia alterar esta situação. Aliás, no programa eleitoral do PSD e do CDS, e posteriormente no programa do Governo, foi prometido um período de transição de 15 anos, o que no nosso entender resolvia a situação. Se estamos a falar de pessoas com 75 anos, daqui por 15 anos seria residual o número de contratos anteriores a 1990.

As propostas da AIL foram «ouvidas» pela maioria PSD/CDS?

Demos a nossa opinião, fizemos propostas, e nada foi feito na defesa destas pessoas. Entretanto surge a nova Lei do Arrendamento Urbano, que imediatamente contestámos porque ela é inconstitucional. Na Assembleia da República fomos recebidos pelos diversos grupos parlamentares e pela comissão que discute estes problemas, a quem apresentámos propostas e pedimos a fiscalização da constitucionalidade de alguns artigos, especialmente aqueles que alteram os contratos. É bom não esquecer que, na altura, antes de 1990, houve um acordo entre o proprietário e o inquilino, e nenhum governo pode alterar isto, havendo uma das partes que não está de acordo, quando há aumentos de valores de rendas completamente incomportáveis.

Apresentámos ainda ao Provedor da Justiça esse pedido de fiscalização da constitucionalidade, dado que por via dos partidos na Assembleia da República e do Presidente da República, a quem a ministra garantiu que os problemas seriam resolvidos para os mais carenciados, não foi possível fazer isso. Resumindo e baralhando, ninguém aceitou fazer o pedido de fiscalização.

Entretanto, depois de várias acções de protesto dos inquilinos, a 14 de Agosto a Lei foi publicada, tendo entrado em vigor 90 dias depois: a 12 de Novembro...

Nós sabíamos que se iria dar aquilo que neste momento está a suceder. Os proprietários estão a enviar cartas aos inquilinos pedindo a alteração do valor da renda e do contrato de arrendamento, independentemente de os inquilinos terem mais de 65 anos ou 60 por cento de incapacidade.

As pessoas ficam muito aflitas quando recebem esta carta, e ficam sem saber o que fazer. É por isso que devem, imediatamente, informar-se com alguém que perceba desta nova Lei. Na AIL temos pessoas com capacidade e conhecimento, mas se os inquilinos não quiserem ir à Associação, devem de ir a um advogado amigo, às juntas de freguesia. Têm é que ter alguma opinião jurídica, para as ajudar a resolver o seu problema. Se, num prazo de um mês, o inquilino não responder à carta, o proprietário pode aplicar um novo contrato. A não resposta é a aceitação total daquilo que o proprietário quer. Temos casos em que se pede 300 euros, quando até se podia pedir 400, mas, em contrapartida, o proprietário pede a alteração do contrato para cinco anos. Se a família pensa que até consegue pagar os 300 euros, e não vê o contrato, daqui a cinco anos está na rua. A carta tem que ser muito bem analisada e respondida, de acordo com aquilo que a Lei permite.

Que resposta devem dar os inquilinos?

A Lei diz que há que ter em conta o rendimento anual bruto corrigido do agregado familiar, do inquilino e da sua família, que habita na casa. Se os rendimentos forem inferiores a cinco salários mínimos (2425 euros) quer dizer que há carência económica dessa família, e neste caso aplica-se um artigo que diz que, por exemplo, quem tiver o rendimento familiar de até 500 euros, aplica-se uma taxa de 10 por cento. Se o agregado familiar, o marido e a mulher, ganharem uma reforma abaixo dos 500 euros têm a possibilidade de pagar, sobre o valor do rendimento, uma renda de 10 por cento, durante os próximos cinco anos. Aos que têm rendimentos entre 501 e os 1500 euros aplica-se uma taxa de 17 por cento, e de 25 por cento a quem aufere entre 1501 e 2425 euros.

No entanto, quando se fala em rendimento anual bruto corrigido a Lei diz que se aplica ao rendimento de 2012. Quando as pessoas começaram a ir às Finanças pedir esse documento foi o cabo dos trabalhos, uma vez que não se pode pedir o que ainda não existe. A ministra foi, entretanto, a correr fazer uma portaria a dizer que as Finanças têm de passar um documento a dizer que ainda não existe o valor do rendimento. O problema é que essa portaria vai ter efeitos retroactivos, sendo a renda actualizada 60 dias após a comunicação do senhorio, o que na maioria dos casos aconteceu em Novembro. Isto quer dizer que em Janeiro passa-se a aplicar o valor da renda, e em Agosto ou Setembro, no mês em que for possível provar os rendimentos de 2012, o inquilino começa a pagar a nova renda e as rendas anteriores em débito, assim como os retroactivos. Ora, isto é ilegal e inconstitucional. Nenhuma lei pode ter efeitos retroactivos.

Isso quer dizer que nos contratos anteriores a 1990 e com até cinco salários mínimos (2425 euros), segundo a nova Lei, o máximo que se poderá pagar é 605 euros?

Sim, porque nos contratos posteriores a 1990 o arrendamento é livre. Nestes casos, o proprietário e o inquilino assinaram um contrato com um mínimo de cinco anos, findos os quais o proprietário pode rescindir, aumentar o valor da renda, fazer o que ele muito bem entender. O grande problema são mesmo os contratos anteriores a 1990, porque estamos a falar de pessoas muito idosas.

Sendo que em Portugal as reformas são baixas, o que acontece se o inquilino já paga mais do que a taxa de esforço?

Estão a aparecer na AIL muitos casos desses. Há inquilinos cujo valor da renda já é superior à taxa de esforço. Ou seja, há inquilinos, que pagam já 70, 80 e 90 euros, cujo o rendimento é abaixo dos 500 euros. Porque a nova Lei não tem retroactividade, muitos inquilinos já pagam acima das suas possibilidades.

Com esta nova lei, os inquilinos podem ou não ser despejados?

Há um artigo que diz que quem tiver mais de 65 anos ou tiver mais de 60 por cento de incapacidade não pode ser despejado. Isto é uma falsa verdade, ou seja, é uma mentira, porque se o inquilino não conseguir pagar o valor da renda, o proprietário pode despejá-lo. Por exemplo, se o proprietário pedir uma renda de 500 euros e o inquilino apresentar um rendimento familiar superior a 2425 euros, neste caso o inquilino não pode alegar insuficiência económica. Tendo o inquilino mais de cinco salários mínimos, o proprietário pode pedir a renda que muito bem entender, até ao limite de 1/15 avos sobre o valor patrimonial, ou seja, 6,7 por cento sobre o valor patrimonial. Se estivermos a falar de um valor patrimonial de 100 mil euros, quer dizer que o valor da renda da casa pode ir até aos 550 euros mensais. Se o inquilino não conseguir pagar, mesmo tendo mais de 65 anos ou mais de 60 por cento de incapacidade, vai para a rua como qualquer outro.

Vamos partir do princípio que o agregado familiar é composto por quatro pessoas: pai, mãe e dois filhos, cujos rendimentos não ultrapassam os cinco salários mínimos, ou seja, ganham 2450 euros. Estas quatro pessoas podem, de facto, pedir carência, mas, mesmo assim, com 25 por cento sobre este valor vão pagar uma renda de 600 euros.

E na situação de as habitações estarem degradadas? O que prevê a Lei nestes casos?

Para estes casos foi publicada uma outra Lei, a n.º 30/2012, que regula a lei das obras. Na Lei anterior, quando o proprietário queria aumentar o valor da renda, o inquilino podia recorrer à Comissão Arbitral Municipal, que avaliava o estado da casa. Se a casa não estivesse em condições, o proprietário tinha que fazer obras. Acontece que, como a Comissão não obrigava os proprietários a fazer obras, continuamos a ter casas em que chove lá dentro, em que os esgoto corre pelas paredes, que, em muitos casos, nem casa de banho têm.

Nalguns casos, os inquilinos fizeram obras, melhoraram as casas, realizaram investimentos. Agora, esta Lei, vem pôr em causa o direito à habitação, ao permitir que o proprietário ponha na rua o inquilino, pagando-lhe uma indemnização de seis meses do valor actual da renda ou realojando-o por dois anos, findos os quais vai para a rua. Basta o proprietário ir à Câmara Municipal e dizer que tem que fazer obras profundas. Isto é inumano.

Quando se aborda este problema referimos-nos aos inquilinos habitacionais, mas o que é certo é que também o comércio está a ser afectado. Que impactos está a ter esta Lei na economia?

Nesta situação, o proprietário pode pedir um valor correspondente a 1/15 avos. O valor da renda vai ser regulado em função do valor patrimonial, ou em função da actividade da empresa. A questão que aqui se coloca é que é por cinco anos, findos os quais esse inquilino vai para a rua. Estamos a falar do comércio, mas também das colectividades de cultura e recreio. Só em Lisboa há várias nestas condições.

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Balcão Nacional de Arrendamento
Instrumento para acelerar os despejos

Entretanto, já entrou em vigor o Balcão Nacional de Arrendamento (BNA)...

Para a AIL, o BNA não resolve nenhum problema, antes pelo contrário, agrava-os. Consideramos que devem ser os tribunais a resolver estas situações, porque se as acções judiciais demoravam muito tempo a ser resolvidas, o problema é dos tribunais, não é dos proprietários nem dos inquilinos. Anteriormente, se o tribunal considerasse que o inquilino não tinha razão era automaticamente despejado ou penalizado. Agora a situação é diferente. O proprietário apresenta no BNA a acção, mas o ónus da justificação é feita pelo inquilino. O proprietário chega a esse balcão, entrega documentos a dizer que o inquilino não cumpriu, por exemplo, o pagamento de três rendas, ou se atrasou no pagamento de quatro rendas durante um ano, e pode pedir o despejo. Agora é o inquilino que vai ter de pagar todos os custos do processo. Nisto como em muitos casos, as pessoas não apresentam queixa em tribunal porque os custos são de tal maneira elevados que não vale a pena, mesmo sabendo que até podiam ganhar.

Este é um instrumento para acelerar os despejos?

Estamos de acordo com os despejos céleres por incumprimento. Agora, não estamos de acordo que um casal, que paga 300 ou 400 euros de renda, e que de um momento para o outro se viu desempregado, possa ser posto na rua. O problema da habitação é muito importante. Nós podemos viver melhor ou pior, com menos ou mais dinheiro, comprando mais coisas ou menos coisas, até alimentar-nos melhor ou pior, mas não podemos viver na rua. Não quer dizer que o proprietário tem de suportar todo este ónus, mas o Estado tem o dever de dar apoios, de acordo com o rendimento das pessoas.

A própria Constituição da República diz que as pessoas têm direito a ter uma habitação digna, de acordo com os seus rendimentos. Este é um retrocesso civilizacional de150 anos, quando não havia contratos de arrendamento. Todos os direitos que foram conquistados, mais concretamente nos últimos 38 anos, depois do 25 de Abril, estão a ser perdidos, aqui em todas as áreas da vida.
 

Exemplo concreto

Um casal de reformados, residentes da Freguesia da Ajuda, Lisboa, com contrato de arrendamento anterior a 1990, recebeu, no início do ano, uma carta do senhorio, que propõe a actualização da renda em 306 euros. Os inquilinos, ambos reformados, pagam actualmente 63 euros de renda, e, com base no rendimento anual do agregado, que ronda os 8117 euros, o aumento máximo da renda só pode ser de 114 euros, mantendo-se no regime por tempo indeterminado. «Se têm mais de 65 anos, a Lei permite-lhes que o contrato se mantenha. O que pode haver é alteração da renda», precisou Romão Lavadinho, lembrando que se os inquilinos não responderem, se não disserem que o contrato se mantém por tempo indeterminado, «passa para os cinco anos» e «depois vão para a rua».



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