Os espectros e a História da Humanidade (1)
«Anda um espectro pela Europa». O que não é novidade. Desde 1848, ano em que foi escrito O Manifesto, que o espectro então anunciado – o espectro do comunismo – assusta os poderes da já então velha Europa e, apesar de cercos e de ataques violentíssimos para derrubar estados que os povos levantaram em seu nome, de exorcismos mil e das não poucas (e precipitadas) certidões de óbito que, particularmente nos últimos vinte anos, lhe foram passados, continua a ser… um grande susto. A tudo tem resistido, espalhou-se pelo mundo, está de boa saúde ou em diferentes estados de convalescença segundo os lugares, apesar da «santa caçada» que, incansavelmente se lhe faz.
Agora, neste tempo histórico, andam uns outros espectros pela Europa. E pelo mundo. Espectros com sentido diferente mas sempre com a característica comum de assustarem os interesses e poderes instalados
Aliás, nisto destes espectros anda tudo ligado. O espectro do comunismo não nasceu por obra e graça de uns pensadores inspirados. Como se mostra em O Manifesto, tomou forma pelo estudo e trabalho sobre a realidade histórica, foi expressão de análise e crítica, tudo continuado por outros documentos em que avulta um que é chave para o conhecimento do processo histórico, que se chamou crítica da economia política – O Capital. Neste se encontram e enunciam as dinâmicas que estão na origem dos outros espectros familiares ao que é conhecido por capitalismo.
Critica da economia política
A crítica da economia política do capitalismo, sendo o capital a relação entre classes sociais, se esquematizada de forma cuidada e programada, foi e continua a ser pedra basilar do marxismo, obra inacabada, não fechada como manual ou algo parecido.
Escrita por Marx, no que ainda publicou em vida, e nos manuscritos por cuja edição Engels se responsabilizou, trata de o processo de produção do capital (Livro 1 e tomos I, II e III), de o processo de circulação do capital (Livro 2 e tomos IV e V) e de o processo total de produção capitalista (Livro 3 e tomos VI, VII e VIII).
Nesse trabalho verdadeiramente gigantesco encontra-se as regularidades resultantes das dinâmicas da economia capitalista, escoradas no estudo e interpretação da história anterior e contemporânea, de certo modo compondo a pré-História da Humanidade e vislumbrando pistas para o que será a História da Humanidade, numa sociedade sem classes, sem exploradores e sem explorados.
Lei da queda tendencial da taxa de lucro
Dessas regularidades do funcionamento da economia capitalista deriva a definição de uma lei, a lei da queda tendencial da taxa de lucro. Esta lei está directamente relacionada com a evolução da composição orgânica do capital (capital constante sobre capital variável, só este criador de mais valia, e só desta derivando o lucro total e real), ficando, claro, muito mais por dizer…
Para bem ilustrar a complexidade do estudo da obra capital do marxismo (e o seu inacabamento…), anote-se que, sendo a terceira secção do Livro 3 dedicada a essa lei, segundo Oeuvres choisies das Editions Galimard, de 1966, num seu capítulo – o XV – se enumerariam cinco «factores que se opõem à baixa da taxa de lucro» (tradução do francês), enquanto na edição italiana da Newton Compton Italiana – e no cap. XIV – se lhes chama «causas antagónicas» e são seis.
Só muito recentemente, já em Agosto de 2012, foi publicado o primeiro tomo do Livro 3 (tomo VI da obra completa) em Edições Avante!, com o rigor que lhe empresta a tradução de Barata-Moura, e nela o capítulo das «causas contrariantes» é também o 14.º, e são seis as enumeradas. No entanto, após o tratamento das 5 primeiras – I. Elevação do grau de exploração do trabalho, II. Compressão do salário para baixo do seu valor, III. Embaratecimento dos elementos do capital constante, IV. A sobrepopulação relativa, V. O comércio externo –, essa 6.ª «causa» é incluída como que em acrescento, pois (como na edição italiana) começa por se ler que «aos cinco pontos acima [referidos] pode ainda juntar-se o seguinte, no qual, porém por ora, não podemos entrar mais profundamente».
A especulação «causa contrariante»?
Essa 6.ª causa – VI. Aumento do capital por acções – não é aprofundada em O Capital por se referir a juros que «apenas rendem juros», e por razões que têm a ver com a «taxa geral de lucro» e a sua repartição por categorias particulares, e com a «taxa de lucro média».
Ora, como Marx escreveu, em carta a Engels de 27 de Abril de 1867, «o que há de melhor no meu livro (O Capital) e aí repousa toda a compreensão» foi ter encontrado, no trabalho, o seu carácter duplo, o dualismo que se exprime em valor de uso e em valor de troca, e ter tratado a mais-valia independentemente das formas particulares (lucro, rendas, juros, despesas) que viesse a tomar nas metamorfoses do capital que, como relação social, nelas se materializa.
Por outro lado, Marx afirmava apenas tomar em consideração o dinheiro como «dinheiro metálico», e referia – e excluía – o «dinheiro simbólico, meros signos de valor» e também o «dinheiro creditício» por, nessa «época da produção capitalista», não serem relevantes. Apenas seriam «uma especialidade de certos Estados», um, e «não estar desenvolvido», o outro.
Andam espectros pela Europa (e não só)
Na nossa «época da produção capitalista», não está exorcizado o espectro do comunismo, antes se confirmam as análises que se baseiam nos conceitos e leituras que levaram ao seu aparecimento. Nessa confirmação incluem-se leis que, apesar de desprezadas, desvalorizadas, combatidas, resultam dessas análises e das dinâmicas que aquelas previam, nas condições da época histórica em que foram feitas as análises e (d)enunciadas as dinâmicas.
A mais significativa, na área da economia política, será a lei da queda tendencial da taxa de lucro, que provoca o susto de um outro espectro, o de que o capital inicial (na sua forma monetária) não tenha retorno acumulado no termo do processo de circulação, uma vez que a composição orgânica do capital desfavorece a criação de mais-valia, e é provocada sobreprodução e não-realização (não se troca M’ por D’).
Pelo que, naturalmente, a procura histórica de novos lugares e condições para o aproveitamento de recursos, e a exploração genética da relação social, ter levado ao imperialismo, ao sistema colonial e neo-colonial, às deslocalizações, possíveis pela (e incentivadoras de) evolução das forças produtivas e da chamada mobilidade dos factores produtivos, procura fautora de luta e de guerras por acesso a recursos e espaços vitais (para a acumulação de capitais).
No bojo da formação social, além do espectro que a sua própria natureza de classe criou ao fazer nascer o assalariamento e a «outra classe» – o proletariado –, o funcionamento do capitalismo criou também contradições insanáveis, assimiláveis a espectros que foi interiorizando.