Natal Passos Coelho

Correia da Fonseca

Alguns dias antes do Natal, o programa «Linha da Frente» trouxe-nos uma reportagem sobre alguns aspectos do actual quotidiano português. Vimos uma jovem mãe que fazia como que o périplo dos contentores de lixo presumivelmente na sua zona de residência. Aqui recolhia o que seriam sobras de produtos alimentares, além uma peça de vestuário, acolá um outro objecto que lhe parecia ainda utilizável. No carrinho para criança que entretanto ia empurrando de etapa em etapa do seu trajecto estava a filhinha talvez com uns dois anos de idade, e para ela ia a mãe comentando os achados que recolhia, partilhando com a filha a boa surpresa proporcionada pelo encontro de uma blusa aparentemente ainda em bom estado, a sorte representada por um pacote de bolachas ainda com muitas sobras, coisas assim. Não era uma mãe andrajosa ou com evidentes sinais exteriores de pobreza, antes se diria pertencer ao vastíssimo segmento que a fria catalogação dos técnicos designa por classe média, isto é, aparentava poder ser minha filha ou filha do leitor que se dispôs a ler estas linhas. Esperava-a provavelmente um apartamento ainda mobilado e decorado com o que resta do naufrágio da sua vida, do tempo em que tinha um emprego, um salário, um futuro, e o mais de que foi despojada ainda não há muito tempo. Onde talvez ainda regresse, ao princípio da noite que nestes dias de Inverno chega cedo, o companheiro que durante o dia terá calcorreado ruas e ruas, subido a muitos andares, batido a muitas portas, na esperança de ter a sorte agora rara de encontrar um emprego, um posto de trabalho, uma remuneração qualquer que ela seja. Para que, estando já esgotados os subsídios de desemprego de um e de outro, se é que a eles ambos tiveram direito, a busca nos contentores de lixo deixe de ser um recurso obrigatório.

Dois versos, hoje

«Linha da Frente» mostrou-nos como estão a sobreviver outras jovens mães portuguesas, desta vez foi sobretudo sobre esse específico segmento da actual sociedade portuguesa que a reportagem se debruçou. Podia, bem se sabe, falar-nos de como vivem ou como se arrastam outros cidadãos portugueses: podia mostrar-nos os velhos sem comida, nem medicamentos, nem tecto eficaz; os trabalhadores com salário mínimo para com ele ampararem filhos sem emprego e netos sem pão; os pensionistas cuja pensão dura menos do que uma semana do mês enorme que sobrevem a seguir; os que perante a ameaça de um despejo da casa onde esperavam morrer começam a acariciar uma solução pelo suicídio. «Linha da Frente» podia, enfim, trazer-nos quadros de drama extremo, se não de verdadeira tragédia, mas talvez tenha preferido uma opção menos espectacular. Mas levou-nos a visitar casas onde já quase não há nada para além da amargura, conhecer mães que olham os filhos com olhos onde moram lágrimas reprimidas que as crianças não podem ver. Não foi uma reportagem arrasadoramente dura, semeadora de terrores, e bem podia sê-lo. Mas fez-nos perceber, quase mansamente, em que inferno sem chamas se tornou este país que há ano e meio caiu nas mãos de efectivos poderes estrangeiros agindo localmente por intermédio de uma espécie de delegado com divisas de primeiro-ministro. Fez-nos entender também que espécie de Natal então se aproximava para muitos, muitos, portugueses, e não apenas para os que uma arrumação burocrática poderia classificar como pobres, muito pobres e indigentes. Seria, como poucos dias depois se confirmou, o Natal Passos Coelho, fabricado ao longo de ano e meio de espoliações diversas. Seria o menos fraterno dos natais, indisfarçado apesar da indignante maquilhagem consubstanciada em desavergonhados apelos a diversas formas de esmola apresentada como solução natural. E, perante tudo isto e muito mais, a memória traz-nos dois versos de Sidónio Muralha escritos no tempo em que o fascismo português ainda usava o perfil «puro e duro» adoptado na década de 30 mas que conservam hoje inteira actualidade: «Hoje é dia de Natal./Mas quando será de todos?»

 



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