A armadilha – The trap
Este artigo leva um desdobramento do título em inglês porque trata de um produto televisivo que ele próprio é subproduto de uma espécie de folhetim da família dos «big brother» que, produtos e subprodutos, pretendem passar por programas de entretenimento. Não que os subprodutos sejam piores que os produtos que lhes servem de modelo. Em termos qualitativos equivalem-se e convém esclarecer já que são todos péssimos e não são programas de entretenimento, mas algo de outro.
A «coisa» cozinha-se assim: anuncia-se um programa de entretenimento que oferecerá a oportunidade, a cerca de duas dezenas de jovens desempregados, a recibos verdes, ou trabalho incerto, de passarem do anonimato à fama nacional, quiçá internacional, carreiras na televisão, na rádio, no cinema (cereja no topo do bolo), com proventos pingue, se vencerem um suposto jogo que se prolonga por mais ou menos três meses, durante os quais, encerrados numa casa, não terão notícias do exterior.
Concorrem à volta de 90 000 (!) jovens desesperados, que são seleccionados por uma equipa de especialistas (onde imaginamos certamente psicólogos e gente do mundo do espectáculo), que reduzirão, e trucidarão, aquelas dezenas de milhares de candidatos a 22 eleitos, mais ponto menos vírgula.
As regras, conhecidas, do suposto jogo-entretenimento são descobrirem o segredo (envergonhante) de vida de que cada um deles é portador e não se agredirem fisicamente.
De 15 em 15 dias ou semanalmente, um deles é ser expulso da «casa mais famosa de Portugal» ou pelo grupo das raparigas ou pelo grupo dos rapazes, ou por subgrupos dentro do grupo, que se vão formando em função dos seus interesses ou inclinações, ou pelo público que vota telefonicamente, através de chamadas pagas, ou pela conjugação destas votações, podendo os jovens a expulsar ser propostos pela própria produção. Portanto, na aparência, democracia que bonde.
O perfil dos jovens selecionados apresenta traços característicos:
– para os homens, mais de um metro e oitenta e tanto de altura, horas e horas de musculação e garrafões de esteróides, corpos depilados e oleados, infâncias traumáticas, venda de drogas ou passagens por cadeias, exibições em bares com os (mal)afamados varões niquelados e notas entaladas nos fios dentais, sexualidades equívocas, rumores de prostituíção e crime violento;
– o perfil das raparigas regista uma colecção de «barbies», horas e horas de ginásios diversos, algumas cirurgias plásticas e implantes de silicone e «botox» em áreas diversas do corpo, infâncias traumáticas e um percurso sócio profissional semalhante ao dos rapazes.
Entre as normas psicológicas e do espectáculo não escritas existe a de selecionar um homem ou mulher comum dos pontos de vista humano, psicológico, moral, que o desespero impeliu para ali, o que servirá à produção do espectáculo para estabelecer o contraste e aviltar ainda mais a imagem dos restantes.
O local do crime, perdão, em que se perpetram as filmagens, e no qual homens e mulheres vivem durante os mencionados meses, é a tal «casa mais famosa do país», decorada à maneira de um filme da Walt Disney, com um salão central, uma cozinha, lareira, profusão de almofadões coloridos, camaratas com muitas, muitas camas de casal, todas recobertas a «édredons», édredons que são arrastados para toda a parte.
Faz parte da «casa mais famosa» um relvado, decerto igualmente sintético, uma piscina com água aquecida, tudo cercado por uma paliçada suficientemente alta para desanimar os do «exterior» e os do «interior». E, numa casa deste tipo, evidentemente, câmaras espias devassam todo o palpitar de pestanas dia e noite (usam infra-vermelhos), manifestando uma predilecção especial pelo ondular dos «édredons». E ainda, e ainda um «confessionário», versão rosa e acolchoada de uma sala de interrogatórios onde a apresentadora se encarrega de pôr em destaque toda a indigência humana, cultural e moral dos... selecionados.
Desde Sartre que se sabe (e a sócio-psicologia posteriormente esmiuçou) que os espaços fechados são uma fonte inexaurível de conflitos comportamentais. Acaba-se a litigar por uma porta fechada ou entreaberta.
O entretenimento-jogo-refeição é servido pela apresentadora que funciona num espaço cénico diverso, fora da «casa», uma mini miniatura feérica das galas «pato bravo» hollyoodescas. A apresentadora, versão lusitana de uma cantora «country» avózinha, sorri complacente in contínuo, enfia sem descanso umas cuecas virtuais nos dizeres e nos neurónios dos concorrentes, puxa para a luz da ribalta a miséria cultural dos concorrentes, incita-os a espiar, delatar, trair os amigos, e através de uma série de pequenos encontrões sábios leva-os a atravessar a linha de fronteira da decência humana. A apresentadora-country só desmancha a pose, em lâmpejos súbitos de irritação, quando sente golpeada a sua imagem de avózinha acolhedora, mas logo reassume a máscara seráfica. O treino é de décadas.
Os concorrentes, com folgados tempos mortos do que poderia ser «un dolce far niente», tempos que acabam por ser gastos a medir a sua sobrevivência no concurso e a tecer intrigalhadas perversas, são sujeitos a tarefas ordenadas por uma Voz sem rosto, que os interpela em qualquer instante (e que é o equivalente sonoro das câmaras-espia), que lhes encomenda tarefas, pessoais ou de grupo, de engano dos outros concorrentes, de sedução, intriga, espionagem, ou, no melhor dos casos, ridículas. As tarefas são pagas ou descontadas numa contabilidade colonial entre a produção e os concorrentes.
Concluindo, que a missa já vai longa, não é fácil a empatia com os seres humanos selecionados. Mas eles fazem parte das vítimas, não dos criminosos. São eles que, no imediato, e sem se darem conta, são ridicularizados, achincalhados, tratados como lixo. E a principal vítima é a Cultura, apresentada como divertimento pateta, atrevidote, sempre a roçar o muito mau gosto na pauta afectiva, sensual, erótica.
De facto, o que se apresenta como um programa de entretenimento, é um programa ideológico, político portanto (e o que contestamos não é a ideologia nem a política em abstracto, mas aquela ideologia política) em que se pretende demonstrar que tudo é subordinável ao deus dinheiro. Os valores lá instituídos são o individualismo feroz, a concorrência sem freios e limites, o ganhar a todo o custo. O deus Cresus compra o direito à privacidade, à solidariedade humana, aos laços familiares, ao amor, à verdade, à fidelidade às convicções e à palavra dada. O que é assassinado todos os dias na «pantalha» pública é o sentido de uma cultura e de um entretenimento humano e enriquecedor.
Final dos finais, propomos uma adivinha: de que programa se trata? Quem é a apresentadora?
Se acertar, não terá prémio pecuniário, mas poderá ter o subido prazer de passar a verdade a um amigo.