O tornado e as vítimas

Correia da Fonseca

Foi, no Algarve, aquele fenómeno terrível que nem por ser localizado deixou de ser uma desgraça. A televisão deu notícias, mostrou imagens, num momento ou outro quase aparentando uma certa frustração porque eram imagens alheias, ocasionalmente captadas por amadores, e não imagens de profissionais que decerto teriam ainda mais impacto. Como toda gente também eu fiquei impressionado, diria até que compungido se a palavra não me fosse vagamente antipática sem que eu saiba porquê. Tocaram-me especialmente alguns farrapos de reportagem que nos contavam como aconteceu haver quem tenha ficado com a vida destruída porque o tornado atingiu de tal modo casa e bens não cobertos por seguros que anos e anos de trabalho ficaram reduzidos a escombros. É certo que o Governo garantiu que sim senhores, vai ajudar, reduzir as dimensões do desastre, mas bem sabemos como estas coisas são: o remédio, se remédio chega a ser, demora a chegar aos lugares onde já se instalaram a angústia ou o desespero, quando chega é sempre escasso, é difícil se não impossível que as feridas algum dia cicatrizem por completo. É claro que neste caso não pode o Governo ser responsabilizado pelo desastre: ele não controla sequer a chuva ou o bom tempo, muito menos os tornados que parecem estar com a tendência de migrarem para o Norte das regiões tropicais onde tradicionalmente quase são a rotina. Infelizmente, porém, o tornado do Algarve não foi o único a desabar sobre o território português: outro tornado, este de um tipo diferente, não meteorológico, vem percorrendo o País de Norte a Sul e semeando misérias, lágrimas e revoltas. E sem o mínimo desrespeito pelo tornado algarvio, muito menos pelos que ele de algum modo feriu ou arruinou, esse outro tornado importa-me mais.

Ver, ouvir e saber

Desse tornado também a televisão nos vem falando. Chama-lhe «crise», designação que depois se prolonga em palavras mais ou menos eufemísticas como «austeridade» quando se trata de «pobreza», «sacrifícios» onde de facto estão «privações», «solidariedade» em vez de «caridadezinha». Será decerto uma forma de proteger sensibilidades, a menos que se trate de ocultar a rude verdade das coisas mascarando-a com artifícios vocabulares, como se a fome que já entrou na rotina diária de milhares de cidadãos portugueses se fizesse sentir menos quando a palavra certa é recusada. Ora, sucede que perante as quotidianas notícias desse outro tornado, notícias quase sempre de carácter geral, desprendidas dos casos concretos de quem vem sendo apanhado pelo horror que não desce dos céus forrados por nuvens cor de chumbo mas sim de gabinetes forrados por tapetes caros, sempre me sinto impelido a saber ao certo como sobrevivem essas vítimas aparentemente esquecidas, quase ocultas, como se o País fosse coisa habitada por abstracções e não por gente com olhos, pele, ossos e ainda alguma carne. De tantos acontecimentos me fala a televisão, de crimes nos Estados Unidos, de inundações na China, da visita da Hillary a Mianmar, de tanta infelicidade e também tanto disparate, e tão pouco me fala do que acontece aqui mesmo, menos que a nosso lado na nossa própria casa comum. Assim, não direi que estranho, mas sim que acho muito mal, que a televisão que foi ao Algarve saber dos que perderam casa, carros, outros bens, até meios de subsistência, não se dê ao trabalho de se deslocar a outros lugares do País onde cidadãos portugueses perderam casa, carros, outros bens, meios de subsistência. Mais: que não aplique relativamente longos tempos de antena a falar-nos das vítimas desse outro tornado que, ao contrário do que atacou o Algarve e partiu logo a seguir, expressamente ameaça ficar por muito tempo não só a flagelar as suas vítimas mas também a multiplicar o seu número. E eu, como decerto muitos outros milhares de telespectadores portugueses, quero saber delas. Porque me sinto, mais do que seu compatriota, seu companheiro. Ou, dizendo uma outra e melhor palavra, seu camarada.

 



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