A ditadora
O cavalheiro nem é dos mais antipáticos entre os da sua especialidade. Mas, é claro, a especialidade lá está, a marcar a sua presença e não só. Por isso, entrevistado a propósito já não sei de quê (nem importa, pois é claro que qualquer motivo é bom para que na televisão se entreviste um banqueiro), ele respondeu, com uma veemência onde me pareceu subjazer uma pontinha de raiva e sem a menor dúvida uma evidente indignação, que o País estará a viver sob a ditadura do Tribunal Constitucional. É certo que não se atreveu a dizer que se trata de uma ditadura da própria Constituição, o que significa que o senhor ainda não se dispensa de usar um certo grau de prudência ou, mais simplesmente, de mínimos bons modos cívicos, mas é claro que a fórmula usada constitui de qualquer modo um ataque à Constituição e até uma implícita recomendação para que ela seja desobedecida e, o que de modo nenhum é irrelevante, odiada. Pois parece plausível que um povo que dia após dia se sente mais perto da miséria sinta despontar em si o ódio contra a causa que lhe é apontada como responsável pela sua desgraça. Se, já se vê, acreditar em quem aponta. Valha-nos a esperança de que a maioria dos portugueses não acredite nas palavras dos banqueiros, até por se tratar de criaturas desde há muito com má fama, digamos assim. Quanto à fórmula acusatória do Tribunal Constitucional e não directamente da Constituição, percebe-se que não passa de uma pequenina manobra de camuflagem, porventura consequente a uns resquícios de respeito pela lei fundamental da República. A menos que transporte consigo o entendimento sem dúvida curioso de que os juízes do Tribunal Constitucional devem decidir, pelo menos em certos casos, em desacordo com o que a Constituição estatui. Em certos casos, isto é, nos casos em que possam estar em questão os interesses da banca, dos banqueiros e, de um modo mais geral, dos grupos privilegiados e dominantes.
Porque a legalidade é nossa
De qualquer modo, as palavras do senhor banqueiro vieram recordar que está bem vivo o velho ódio dos grandes interesses à Constituição da República e que devem os cidadãos estar preparados para que, mais dia, menos dia, volte a surgir na vida política portuguesa uma ofensiva concreta para que a Constituição que emergiu da libertação de 74 e ainda resiste, embora desde então já mutilada aqui e ali, seja transmutada numa Constituição concordante com o capitalismo sem freio, sem vergonha e sem remorso que se sente agora «na mó de cima». Mas as tais palavras revelam ou confirmam mais alguma coisa: que a Constituição de 76, apesar das mutilações e golpes que lhe têm sido desferidos, continua a ser uma barricada que impede muitos dos assaltos que os grandes exploradores gostariam de desencadear contra o que ainda resta ao explorados. A situação pode talvez conduzir-nos à formulação seguinte: enquanto se mantiver o essencial da Constituição da República Portuguesa, os diversos círculos reaccionários e opressores, aplicados a uma dinâmica contra-revolucionária desde o dia imediato ao derrube do fascismo, tomam consciência de que o 25 de Abril está vivo não apenas no espírito e no afecto da esmagadora maioria dos cidadãos mas também na legalidade portuguesa. E desta circunstância formal decorre uma consequência importante: a de que todas as medidas governamentais cuja aplicação tem como consequência o aumento da pobreza, o alargamento dos já vastos territórios da miséria, a redução a quase nada das formas de protecção conquistadas em favor dos mais fracos, o reforço da transferência em favor do capital de mais uma fracção do produto nacional que até agora ainda pertencia ao trabalho, enfim toda e qualquer acção de esbulho do mais fraco pelo mais forte, está de facto ferida de inconstitucionalidade. É esse diagnóstico que, sob a forma de sentenças, vai cabendo aos juízes do Tribunal Constitucional. Desagradado, contra esse dado fundamental dispara o senhor banqueiro, tanto e de tal modo que se atreve a falar em ditadura. Compete-lhe ter paciência. Enquanto à generalidade dos cidadãos compete defenderem a Constituição que tanto o irrita.