A cínica legitimidade deste Governo
Como jornalista interessado nas questões éticas, elaborei alguma reflexão sobre o tema da verdade, que pode definir-se como a adequação da narrativa aos acontecimentos descritos, de modo a eles sejam percebidos tal como ocorreram e no contexto em que ocorreram. Limitar a verdade a uma parte dos factos necessários para descrever a verdade é ficar pela meia verdade ou mesmo pela mentira.
Pode mentir-se com a verdade? Se a revelação de elementos verdadeiros for selecionada de tal modo que o destinatário da narrativa fique com uma noção exatamente ao contrário do que ficaria se soubesse todos os factos, estamos perante uma mentira, se for deliberada, ou uma inverdade, se for involuntária.
A questão da verdade foi um tema central das reflexões de Dietrich Bonhoeffer (1906-1945), teólogo luterano e militante antinazi (foi acusado de entrar numa conspiração para eliminar Hitler) morto no campo de concentração de Flossenburg a escassos dias da libertação, em abril de 1945. Bonhoeffer deixou extensa obra filosófica, teológica, poemas e alguma ficção. Vivendo na Alemanha nazi, testemunhou como a «verdade» pode ser um instrumento de dominação num regime totalitário, pondo filhos a denunciar os pais e vice-versa.
Bonhoeffer entende que o conceito de verdade não pode ser desgarrado de outros valores, como a confiança, a lealdade e até o segredo. A verdade que não se baseia na confiança, na lealdade e que desrespeita todos os segredos é, para Bonhoeffer, uma verdade cínica. Ele deu como exemplo esta situação: se um professor, numa aula, perguntar a um aluno se o pai é alcoólico, o aluno tem o direito – e até dever – de responder que não, sem fugir à verdade viva, o conceito que Bonhoeffer opõe à verdade cínica. Por várias razões: se um aluno reconhecer que o pai é alcoólico, abre uma torrente de mal-entendidos e estigmas. Um alcoólico é apenas uma pessoa que bebe muito álcool – não é garantido que seja um mau cidadão, um irresponsável, um mau pai ou um arruaceiro: mas quando de alguém ouvimos dizer que é alcoólico, imediatamente nos assoma a imagem de uma pessoa pouco recomendável. Eis como dizer de alguém que é alcoólico é difundir uma verdade cínica. Além disso, o aluno fica com o estigma de filho de alcoólico. E o que quer dizer filho de alcoólico? Nada, não diz absolutamente sobre a pessoa – mas todos sabemos que não nos é indiferente nada saber sobre uma pessoa ou saber que é... filho de alcoólico.
Dietrich Bonhoeffer vai mais longe na legitimação da «mentira» do aluno: com a sua resposta, o aluno está a dar expressão à verdade de que uma família é uma instituição sui generis e que o professor não tem qualquer direito a interferir nela. Diz Bonhoeffer que esta mentira contém mais verdade do que haveria se o aluno tivesse traído a fraqueza do pai diante da turma.
A verdade cínica consiste exatamente na apresentação de factos verdadeiros parcelares ou com um tal ângulo que, ao contrário de proporcionar aos destinatários da narrativa a possibilidade de fazer juízos de valor ponderados, se dirige à emotividade ou ao preconceito.
Esta distinção entre verdade viva e verdade cínica pode ajudar-nos bastante a distinguir a verdadeira natureza das afirmações que ouvimos.
Lembrei-me de utilizar esta distinção para dar resposta a um problema que se coloca com grande atualidade e premência: a questão da legitimidade do Governo. Como é notório, cada vez maior é o número de pessoas que põem em causa a legitimidade do atual Governo, mesmo entre as hostes que o apoiaram e ali colocaram.
Este Governo é ou não legítimo? Socorrendo-se da lei, os defensores do Governo respondem sobranceiramente que ele foi regularmente eleito nos termos constitucionais, é sustentado por uma maioria aparentemente sólida, pelo que é legítimo.
A legitimidade, porém, não se limita a uma eleição regular e uma maioria de suporte: isso é apenas legalidade. Ou, para utilizar os critérios de Bonhoeffer é uma legitimidade cínica. É que a legitimidade envolve a fidelidade ao mandato recebido, reclama a lealdade à confiança que foi depositada. E o mandato é outorgado em função das promessas e programas que mereceram a aceitação do eleitorado.
No dia em que é empossado, um Governo é legítimo, completamente legítimo. No dia seguinte, já é apenas legal e, se quiser reclamar-se legítimo, tem de o merecer, através da obra que realiza. É a legitimidade viva, merecida.
É preciso denunciar o cinismo dos que reconhecem este Governo como legítimo. É apenas legal. O que é muito pouco.
Também é preciso denunciar aqueles que lançam o anátema sobre «a rua» e o seu papel na democracia. É exatamente a rua o termómetro da legitimidade viva de cada governo. Por mau caminho vão os governantes quando não conseguem captar a mensagem da rua.
Não se trata, como desdenhou o Cardeal Patriarca de Lisboa, na sua mais infeliz intervenção pública de há muitos anos, e ao arrepio do que pensam os outros bispos portugueses, provavelmente mais frequentadores da «rua», de «ser a rua a dizer como se governa».
Quando «a rua» sai à rua, não vem dizer como governar: sai para dizer ao Governo que não está a governar como se comprometeu. Está a falar da honra de quem recebeu mandato.
Quando «a rua» sai à rua, não há o perigo de o poder cair na rua. Trata-se apenas de dirigir o convite ao Governo para que caia em si – e vá para a rua, pela porta dos fundos. Para que nós, os da «rua», não tenhamos de nos cruzar com ele.
(*) Jornalista, independente, irremediavelmente de esquerda