Cortar, e depois

Correia da Fonseca

Exagerando um pouco mas não muito, diria que são raros os dias em que não surge nos ecrãs dos nossos televisores um cavalheiro, economista ou politólogo, opinion maker ou equiparado, a explicar à multidão ignara que somos nós o que é preciso fazer para reduzir a curto prazo o défice orçamental, equilibrar as contas públicas, pagar aos nossos credores capital e juros e, finalmente, singrar um dia no mar da tranquilidade financeira. E o cavalheiro dirá, no tom de um juiz que profere uma sentença indiscutível ainda que seja de morte, que o que é preciso é pegar no OE, o Orçamento do Estado, e equilibrá-lo cortando «do lado da despesa». Não recordo que perante esta recomendação sempre peremptória algum entrevistador tenha perguntado pelo outro lado, o da receita, que seria interessante e desejável ver crescer. Mas esse outro eventual lado da conversa é provavelmente menos atraente para a generalidade dos experts convidados a debitarem certezas, talvez porque o tal lado das receitas tem vindo a minguar espectacularmente em consequência das sábias medidas ditas de austeridade impostas pelo Governo. Ainda assim, porém, se a questão lhe for posta, o técnico não se dará por achado e responderá sempre que a solução será decidir mais cortes na despesa. Para mais eficazmente nos deslumbrar com a sua sabedoria referir-se-á talvez à «despesa primária do Estado», certo de que nem todos se apercebem de que a fórmula se refere sobretudo a custos suportados pelo Estado com a saúde dos cidadãos, a sobrevivência dos velhos, as enormes dificuldades dos desempregados, a acção de todos os níveis da escola pública no seu permanente combate às ignorâncias. Na verdade, ouve-se esta espécie de grito de guerra que manda «cortar na despesa do Estado» e talvez se imagine que ainda restam grandes nacos das famosas «gorduras» como que a aguardarem que venham podá-las. Não as há ou, pelo menos, não as haverá em quantidade e valor bastantes para que possam constituir solução para os problemas orçamentais. Servirão, quando muito, para dissimular os verdadeiros alvos dos cortes preconizados.

As outras gorduras

E, contudo, há por aí gorduras, sim, mas não na área do Estado. Como é sabido, da América vêm por vezes informações acerca dos possuidores das maiores fortunas existentes por esse mundo fora, e lá estão em lugares de topo os nomes de três cidadãos portugueses. Mas não se pense que esta referência possa ser introdutória à sugestão de uma espécie de saque fiscal sobre os bens daqueles três senhores que devem, sim, pagar ao Estado, sem estratagemas nem fugas, o que ao Estado é justo que paguem, ficando por aí a sua contribuição que decerto já não será pouca. A questão é que entre esses três portugueses e a enorme multidão dos que constituem a chamada classe média há seguramente um grande número de cidadãos, eles também detentores de vastos patrimónios, cujos nomes não entram nos tops mundiais das maiores fortunas mas poderiam decerto figurar na extensa lista dos portugueses cujo nível de vida não foi sequer significativamente beliscado pela crise que lançou na pobreza, na angústia, no desespero, quando não na tentação do suicídio, milhares de compatriotas seus. E é claro que nesta alusão se incluem grandes empresas ou grupos empresariais cuja saúde é tão excelente que continuam a embolsar lucros que ascendem a milhões. A televisão onde os tais sábios vêm reclamar «cortes do lado da despesa» não nos ensina nada quanto à concreta possibilidade de ser reclamada àquelas áreas confortáveis e confortadas, finalmente, a participação financeira que beneficiaria o OE «pelo lado da receita», tornando possível reduzir substancialmente ou mesmo eliminar os cortes «do lado da despesa» que serão suportados não por inexistentes gorduras, mas sim por carne já muito sangrada, por nervos exaustos, por ossos já feridos. Seria, pois, uma total reorientação do brado tão repetido de «cortar!». Assim se salvaria ainda alguma coisa do apoio devido aos doentes, aos velhos, aos que já quase imploram um posto de trabalho como quem pede uma esmola. Ou, dizendo quase o mesmo embora de outro modo: assim se respeitaria a Constituição da República na sua letra e no seu espírito.



Mais artigos de: Argumentos

A doutrina e os actos

«O escândalo é grave quando dado por quem, por natureza ou em virtude da função que exerce, é obrigado a ensinar e a educar os outros» («Catecismo da Igreja Católica», Nº. 2285). «Para o Vaticano, o capitalismo, o lucro, a...