O jogo dos espelhos

Jorge Messias

«Uma so­ci­e­dade só é de­mo­crá­tica quando nin­guém for tão rico que possa com­prar al­guém e nin­guém for tão pobre que tenha de se vender a al­guém» (Jean-Jac­ques Rous­seau, «Sobre a Origem da De­si­gual­dade Entre os Ho­mens»).

«Di­nheiro, é bom! Mas cer­ti­fica-te, sempre, de quem é dono de quem!...»

(Vítor Hugo, «Re­fle­xões»).

«O pro­le­ta­riado é o edi­fi­cador do mundo mo­derno. Cons­truiu as ci­dades e as fá­bricas. Pro­duziu quase todos os ob­jectos cor­rentes da exis­tência. Vive no meio das suas obras, num mundo trans­for­mado e hu­ma­ni­zado pelas suas mãos.

Se­nhor e do­mi­nador da Na­tu­reza, o ope­rário é con­tudo pos­suído pelo ca­pi­ta­lista e é afas­tado das suas re­la­ções de pro­dução. O pro­le­tário é o homem/​mer­ca­doria: vende a ou­trem a força do seu tra­balho cri­ador e os pro­dutos dessa força de tra­balho. É a pri­meira ví­tima da mi­séria, da opressão, da es­cra­va­tura, da de­gra­dação e da ex­plo­ração. O der­rube do ca­pi­ta­lismo não é so­mente a exi­gência par­ti­cular dos co­mu­nistas. E estes re­cusam-se a aban­donar a sua con­fi­ança na acção comum, in­dis­pen­sável entre eles pró­prios e os crentes». (Karl Marx, «Os mar­xistas e a Re­li­gião», re­colha de Mi­chel Verret).

O es­pelho re­flecte a imagem. Uma imagem pro­jec­tada de pernas para o ar. Assim é também o ca­pi­ta­lismo. À di­ta­dura chama-se de­mo­cracia. Ao caos, li­ber­dade. Basta olhar-se para a Pe­nín­sula Ibé­rica, para não fa­larmos na Grécia ou em Itália. Na Ibéria, Por­tugal é um es­pelho de Es­panha e Es­panha re­flecte Por­tugal. Quem diz Bankia, Po­pular, Cajas de Ahorro, Sa­ba­dell, é como se dis­sesse BPN, Ope­ração «Monte Branco», la­va­gens de di­nheiro, offshores, etc. O mundo que os jor­nais re­tratam é ca­pi­ta­lista, im­pe­ri­a­lista e ca­tó­lico.

Quando se aponta o Va­ti­cano como uma cú­pula cen­tral dos crimes so­ciais do ca­pital, não se está a falar de cor ou por fi­xação mór­bida no ódio às re­li­giões.

Na grande in­triga em curso, as hi­e­rar­quias das igrejas apenas desem­pe­nham o papel de im­pres­cin­dí­veis com­parsas na cons­pi­ração. O nosso ini­migo prin­cipal é o Ca­pi­ta­lismo com o seu poder de Es­tado. É contra ele que temos de lutar. Só no dia em que o Povo des­man­telar o seu sis­tema se ini­ciará a grande ar­ran­cada para o So­ci­a­lismo.

É neste uni­verso de in­te­resses do grande ca­pital que se trava ac­tu­al­mente a luta de classes. Em Por­tugal e em Es­panha, por exemplo, a po­lí­tica eco­nó­mica é a mesma: re­duzir os gastos pú­blicos com os ci­da­dãos, des­truir as pe­quenas e mé­dias em­presas, ca­na­lizar todos os re­cursos para os bancos e criar, por fim, os am­bi­ci­o­nados mo­no­pó­lios que ca­rac­te­rizam a fase im­pe­ri­a­lista. Na Pe­nín­sula Ibé­rica, filha di­lecta da Igreja, existem con­di­ções para que este pro­jecto avance ra­pi­da­mente. Tal como há sé­culos, uma grande parte da ri­queza con­tinua nas mãos da Igreja, do poder po­lí­tico e dos il­lu­mi­nati. Basta dar-se um pe­queno (mas di­fícil) passo e fi­carão for­mados os grandes mo­no­pó­lios que se apro­pri­arão da quase to­ta­li­dade do pro­duto de ambos os países. Quanto aos po­bres (e novos po­bres) dei­xarão de existir por ra­zões na­tu­rais (do­enças, fome, con­di­ções de vida, sui­cí­dios, de­crés­cimo dos nas­ci­mentos, etc.). Se o ritmo for mais lento do que o de­se­jável, exis­tirá então o re­curso à má­gica re­ceita dos ca­ta­clismos e das guerras de­vas­ta­doras.

A nível al­ta­mente se­creto, o Va­ti­cano par­ti­cipa nestes planos sui­cidas do Apo­ca­lipse total. Pri­meiro, trata-se de criar o Caos; de­pois, de gerir as suas ruínas doi­radas. A exemplo do que acon­tece no mundo laico, surgem em ca­ta­dupa os es­cân­dalos que ar­ruínam a rede de em­presas ecle­siás­ticas. Mas logo se vê que elas fe­cham, legam pa­tri­mó­nios, mudam de nome, in­cor­poram nos ca­pi­tais ge­ne­rosos sub­sí­dios do Es­tado, fundem-se com as suas con­gé­neres, e al­cançam po­si­ções que lhes per­mitem as­pirar a serem parte in­te­grante de fu­turos mo­no­pó­lios im­pe­ri­a­listas.

Os co­mu­nistas com­batem e de­nun­ciam estas po­lí­ticas. Sabem que quanto mais avançam, mais os ca­pi­ta­listas se isolam do mundo real. Na sua fase su­prema o ca­pi­ta­lismo fa­bricou, por ironia, a corda em que se irá en­forcar. Até no seu pró­prio campo cresce a con­vicção de que, se ainda fosse pos­sível, me­lhor seria às suas van­guardas re­cuar. No seu de­sen­vol­vi­mento, o ca­pi­ta­lismo vai criar uma mi­noria de super mi­li­o­ná­rios; e no lado oposto, no país global da mi­séria, so­bre­vi­verão bi­liões de es­far­ra­pados. A luta de classes pros­se­guirá, mesmo de­pois das classes des­truídas.

Lu­temos, pois. «De pé, fa­mé­licos da terra! ...».

(con­tinua)



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