Cantiga da rua

Nuno Gomes dos Santos

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Cantas bem mas não me encantas é uma máxima velha e sábia, utilizada por quem ouve coisas cuja forma não tem que se lhe aponte, mas de conteúdo duvidoso ou, mesmo, inaceitável. Foi isso, por outras e variadas palavras, que ouvi no café, na fila do supermercado, na paragem do metro, a muita gente, logo após o senhor de Passos ter comunicado ao país que ia dar mais uma machadada ignóbil em quem trabalha e uma ajuda cúmplice aos senhores do capital.

«Então não era inconstitucional tirarem os subsídios de férias e de Natal?», «Eu não disse que os gajos davam a volta a isso?», «Vão roubar para a estrada!», era o que mais se ouvia. Um vizinho meu, de repente desperto para a situação que finalmente o atinge (dando razão a Brecht: primeiro foi este e depois aquele, mas eu achei que não tinha nada a ver com isso até que...) e visivelmente longe do que se pode ou não fazer para tentar alterar o rumo da situação, dizia que ia escrever uma carta registada ao Presidente da República a protestar, admitindo, dificilmente e após demorada e paciente palestra de um circunstante, que esse caminho se ficaria pelo cesto dos papéis de um subsecretário de um adjunto de um assessor de um dos secretários da presidência.

Tinha música, aquele coro de protestos. Eram vozes agudas de sopranos irritados, secundadas por solos de tenores a subir o tom e por barítonos, baixos e contraltos menos efusivos mas não tão contidos que o seu protesto andante ma non tropo não se fizesse ouvir. Eram cantigas de rua, não de acomodação, como as que se usavam nos filmes do tempo em que se não podia – ou não se queria – ir mais além do que a pilhéria de mistura com o cultivo de um quotidiano de resignação, mas de protesto.

Estava desafinado, o coro? Pois estava. Porém, da conversa mais participada de todas as que ouvi, por obra de alguns mais conhecedores destas partituras, o final soou como um acorde maior, imperfeito, é certo, mas já audível.

Então pensei numa cantiga que escrevi há anos, infelizmente actual, cujo refrão dizia e diz (já estou a ver o esfregar de mãos de alguns escribas que levam as palavras à letra...) «quem vai disparar o tiro certo para a vida se cumprir?». E, porque o que atrás descrevi me deu ânimo, vou responder: nós! Nós vamos disparar o tiro certo para a vida se cumprir! Basta sabermos que a cantiga, as palavras que contém, a força que emana de um coro unido a cantar a esperança, a vontade, a força que os nossas vozes têm, é uma arma poderosa e indestrutível. Cantemo-la nas greves, nas urnas, nos locais de trabalho. E na rua. Porque, afinal, a cantiga da rua desta vez, há-de ser outra.



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