Quando a generosidade é «paga» com o esmero
Disse uma vez o malogrado Bernardo Sassetti que nunca teve um público tão «bom» e «genuíno» como o da Festa do Avante!. Como ele, que tantas vezes ali actuou (magistralmente, aliás), outros artistas certamente pensarão o mesmo: é que o público da Festa entrega-se de forma generosa a cada espectáculo – quer se trate de um nome sonante e consagrado como de um grupo ou artista jovem e desconhecido – contribuindo para o tornar inesquecível. Para si próprio e para os músicos, que em palco tudo fazem para retribuir. Será este o segredo de tantos e tão memoráveis espectáculos?
Depois do magnífico Concerto Promenade, que preencheu a noite de sexta-feira (ver página 25), o palco 25 de Abril reabriu ao início da tarde de sábado com os An X Tasy. Após duas actuações, em anos anteriores, no Palco Novos Valores, a banda algarvia não acusou a pressão e, com um impressionante à-vontade, martelou o seu som pesado, intercalado com palavras de agradecimento ao PCP, que «sempre se portou bem connosco» e de incentivo «à camaradagem». No final, o vocalista ainda teve tempo de se lançar para o público e de ser por este recebido em braços.
Do hard core cantado em inglês passou-se para a música popular portuguesa e para um dos seus máximos expoentes nos dias de hoje: Sebastião Antunes e Quadrilha. A um ritmo acelerado, ao som do cavaquinho, do violino, da gaita de foles e da guitarra, a banda fez esquecer o forte calor que se fazia sentir e pôs toda a gente a dançar ao som de novas e antigas canções, como O Mar não é de ninguém! ou Ai Caramba.
A seguir, o estilo voltou a mudar, agora para o pop dos Miúda, que agradou aos fãs da banda e despertou a curiosidade a outros que não conheciam o trabalho deste jovem grupo de Lisboa. A seguir o palco foi dos Wraygunn, que contagiaram a assistência com a sua sonoridade bluesy e os riffs de guitarra de Paulo Furtado. Animado e bem disposto, o grupo chegou mesmo a chamar ao palco dezenas de pessoas da assistência para com ele cantar uma das canções. No final, Paulo Furtado despediu-se de todos, praticamente um a um, e o espectáculo continuou, para gáudio da numerosa e entusiástica assistência.
Image 11372
Os espanhóis Triquel foram os senhores que se seguiram, proporcionando um vibrante concerto de rock celta, como denominam o seu próprio estilo musical: uma base de música tradicional «celta» combinada com instrumentos electrificados, batidas rápidas e um ritmo alucinante. O resultado foi uma hora de pura alegria, pontuada aqui e ali por mensagens de estímulo à luta e à reflexão sobre o mundo em que vivemos.
Já caía a noite na Atalaia quando Sara Tavares subiu ao palco com a sua banda, num ambiente perfeito para as quentes músicas da cantora luso-caboverdiana. Num espectáculo que foi um hino à música negra, em muitas das suas expressões (das mornas ao hip-hop), Sara Tavares esteve acompanhada por Nancy Vieira, Rão Kyao e Carlos Nobre, o Pacman dos Da Weasel.
Os Ciganos d'Ouro voltaram à Festa para fazer o que melhor sabem: dar concertos fantásticos e pôr milhares de pessoas a saltar e a dançar! Com a guitarra flamenca em ritmo alucinante, apresentaram canções do seu novo trabalho, Fado Flamenco, como a versão de Bandoleiro, de Ney Matogrosso, e não esqueceram a sua interpretação da canção dedicada a Ernesto Che Guevara, Hasta Siempre.
Menos conhecido do público da Festa era Remo Cavalinni e a sua Blues Band, mas nem por isso deixaram de actuar perante um recinto transbordante, que reagiu com entusiasmo sempre que o jovem músico ultrapassava os limites do possível com a sua guitarra... Magistralmente acompanhado pela sua excelente banda, com destaque para o trompetista e para o saxofonista, Remo Cavalinni terminou a sua actuação com uma muito saudada versão de Voodoo Child, de Jimmy Hendrix.
A noite ia já alta quando Jorge Palma subiu ao palco para um dos mais aguardados concertos do dia. Dividindo-se entre a guitarra e o piano, Jorge Palma começou o espectáculo com algumas canções novas e com clássicos como Frágil ou Dá-me Lume. Em Minha Senhora da Solidão teve ao seu lado, na voz, Cristina Branco, enquanto que Jeremias, o Fora da Lei foi interpretada em parceria com Tiago Bettencourt. A seguir surgiu Tim, para cantar Só e o original dos Xutos & Pontapés Circo de Feras. Todos juntos cantaram Estrela do Mar, Encosta-te a Mim e A Gente vai Continuar. Para surpresa geral, o espectáculo terminou em inglês, com Like a Rolling Stone, de Bob Dylan.
A noite acabou com os Blasted Mechanism e o seu habitual aparato de máscaras e a sua sonoridade de difícil catalogação: será rock ou será simplesmente Blasted? A resposta não é simples mas também pouco interessa, pois esta é uma das mais consagradas (e singulares) bandas nacionais e isso ficou claro no palco 25 de Abril, tal a enegia que colocaram no concerto e a legião de fãs que os esperava e que os recebeu com um inequívoco calor.
Domingo de sons variados
No domingo, era ainda hora de almoço quando os Linda Martini começaram a sua actuação. Mas ninguém diria, vendo o considerável número de pessoas que enchiam o recinto e cantavam as canções da banda lisboeta. A seguir, vieram os Anti-Clockwise e o seu punk explosivo, à imagem dos norte-americanos Ramones que um dos membros da banda evocava na camisola que vestia. Impulsionados pelo esquerdino guitarrista e pelo poderoso baterista, os Anti-Clockwise terminaram o espectáculo com uma bem conseguida versão dos britânicos The Clash.
Os dois espectáculos seguintes, sendo diferentes, tiveram uma coisa em comum: o facto de combinarem a música tradicional dos seus países (no caso, Escócia e Portugal) com sonoridades mais modernas. Os Shooglenifty mostraram por que razão são considerados um dos melhores grupos a actuar ao vivo na Grã-Bretanha. Liderados pelo violinista, arrancaram uma actuação vibrante que literalmente fez levantar pó na Atalaia. Na mesma linha, os Diabo na Cruz não deixaram por mãos alheias o sucesso que têm vindo a conquistar nos últimos anos e não desiludiram ninguém, mostrando que guitarras eléctricas não ficam mal lado a lado com bombos e violas braguesas, fazendo jus ao nome do seu segundo álbum Roque Popular.
Os Peste & Sida tiveram a difícil tarefa de actuar a seguir ao grande comício de encerramento, mas fizeram-no sem qualquer problema e, de uma certa forma, continuando-o. Está na tua mão, mudar a situação foi – certamente não por acaso – o primeiro refrão entoado pela banda, a que se seguiu Cai no Real, Sol da Caparica e Alerta Geral (Repressão Policial, Terrorismo Oficial...). Saudando todos os que trabalham na Festa e os artistas que, como eles próprios, «têm o privilégio» de ali actuar, a banda interpretou a sua versão de A Morte Saiu à Rua, de José Afonso (dedicada a José Dias Coelho, militante comunista assassinado pela PIDE em 1961), a que se seguiram muitos outros clássicos.
O guineense Ba Cissoko encantou com o seu domínio da kora e a sua sonoridade algo misteriosa e ao mesmo tempo tão cativante. Ora alegre ora melancólico, Ba Cissoko revelou os sons de uma África desconhecida em Portugal.
Para fechar uma Festa em que a música portuguesa tem lugar de destaque nada melhor do que os Gaiteiros de Lisboa com e os seus bombos, as suas gaitas de foles e as suas vozes profundas. A acompanhá-los estiveram Ana Bacalhau, vocalista dos Deolinda, Zeca Medeiros, o grupo alentejano Adiafa e Sérgio Godinho, que não estava anunciado mas que acabou por aparecer, dando o seu contributo a este memorável espectáculo de encerramento.
É certo e sabido que a Festa do Avante! não é um festival de música. Mas não é menos verdade que também é de música – muita e boa música – que se faz esta Festa. Melhor só para o ano!