Pergunta ao Borges

Gisela da Conceição

Não sabes? Não en­tendes? As de­ci­sões passam-te ao lado? Sentes-te pa­cóvio? Es­tú­pido? Per­gunta ao Borges.

Mas quem é o Borges, dirás tu, com a voz su­mida de quem está à beira de im­plosão.

Após es­for­çada in­ves­ti­gação, des­cobri que o Borges é um con­sultor. De quem e para quê, em rigor ig­noro. Mas como em qual­quer pes­quisa, a her­me­nêu­tica da sus­peita é le­gí­tima. Con­sultor do Go­verno para as pri­va­ti­za­ções, afirma, a uma só voz, a co­mu­ni­cação so­cial. Nada disso. Somos otá­rios, mas não tanto. Quem manda no Borges? A quem presta o Borges contas? Que in­te­resses clan­des­tinos de­fende o Borges? In­con­tor­ná­veis in­cóg­nitas que fi­carão, por en­quanto, em sus­penso. O Borges é um con­sultor. Ponto. Por isso, em caso de dú­vida, seja qual for a ma­téria… per­gunta ao Borges.

Ave­ri­guei mais al­guns traços pe­cu­li­ares do homem, o que não foi fácil porque a cri­a­tura tem min­guada subs­tância. Dizem que é uma grande ca­beça, uma in­te­li­gência po­de­rosa – o que está à vista nas duas únicas ideias que lhe co­nheço: des­pedir; baixar sa­lá­rios. Como os teus ho­ri­zontes estão con­fi­nados, seja qual for a mo­da­li­dade, a des­pe­di­mento e sa­lá­rios, já sabes: em caso de in­com­pre­ensão, em caso de agonia, em caso de ra­sura dos teus di­reitos, em caso de de­su­ma­ni­dade… per­gunta ao Borges.

O Borges faz-me lem­brar o Pa­checo. Falei com o Eça (o tal de Queiroz) que privou in­ti­ma­mente com o Pa­checo. Não achou mal a evo­cação. E disse-me mesmo que, para que as coisas fi­cassem em pratos limpos e as mentes mais es­cla­re­cidas, me au­to­ri­zava a trans­crever ex­certos de um texto seu sobre o Pa­checo. Re­ju­bilei. Agra­deci. E aqui vai. Con­fuso? Per­gunta ao Borges.

«Eu ca­su­al­mente co­nheci Pa­checo. Tenho pre­sente, como num re­sumo, a sua fi­gura e a sua vida. Pa­checo não deu ao seu País nem uma obra, nem uma fun­dação, nem um livro, nem uma ideia. Pa­checo era entre nós su­pe­rior e ilustre uni­ca­mente porque tinha um imenso ta­lento. To­davia, (…) este ta­lento (…) nunca deu, da sua força, uma ma­ni­fes­tação po­si­tiva, ex­pressa, vi­sível! O ta­lento imenso de Pa­checo ficou sempre ca­lado, re­co­lhido, nas pro­fun­di­dades de Pa­checo! Cons­tan­te­mente ele atra­vessou a vida por sobre emi­nên­cias so­ciais: De­pu­tado, Di­rector-geral, Mi­nistro, Go­ver­nador de bancos, Con­se­lheiro de Es­tado, Par, Pre­si­dente do Con­selho – Pa­checo tudo foi, tudo teve, neste País que, de longe e a seus pés, o con­tem­plava, as­som­brado do seu imenso ta­lento. (…) Este ta­lento nasceu em Coimbra, na aula de di­reito na­tural, na manhã em que Pa­checo, des­de­nhando a Se­benta, as­se­gurou que “o sé­culo XIX era um sé­culo de pro­gresso e de luz”. O curso co­meçou logo a pres­sentir e a afirmar, nos cafés da Feira, que havia muito ta­lento em Pa­checo: e esta ad­mi­ração cada dia cres­cente do curso, (…) a fama desse ta­lento alas­trou então por toda a Aca­demia. (…) Esta ge­ração aca­dé­mica, ao dis­persar, levou pelo País, até os mais ser­ta­nejos burgos, a no­tícia do imenso ta­lento de Pa­checo. E lá em es­curas bo­ticas de Trás-os-Montes, em lojas pal­reiras de bar­beiros do Al­garve, se dizia, com res­peito, com es­pe­rança: – “Pa­rece que há agora aí um rapaz de imenso ta­lento que se formou, o Pa­checo!” Pa­checo es­tava ma­duro para a re­pre­sen­tação na­ci­onal.»

Obri­gada Eça. Volta. Nem tu ima­ginas a ga­leria de per­so­na­gens que aguarda o sabor acre da tua ironia. Du­vidas? Per­gunta ao Borges!

 

Nota: o texto ci­tado é um ex­certo da Carta VIII que in­tegra a obra de Eça de Queiroz in­ti­tu­lada A Cor­res­pon­dência de Fra­dique Mendes.



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