A trincheira

Correia da Fonseca

A propósito ou não da ofensiva do governo contra a RTP, anda por aí uma pergunta por vezes repetida com travo de provocação: «Serviço público de televisão, o que é isso?» Trata-se sempre ou quase sempre de suscitar uma dificuldade supostamente intransponível à defesa da manutenção na área estatal de uma operadora a quem estejam confiadas tarefas de interesse nacional, por isso aliás paga no todo ou em parte pela generalidade dos cidadãos. Contudo, ao contrário do que já está sugerido no modo como a questão é suscitada, a resposta não é difícil, podendo embora surgir sob formas que na sua formulação podem oscilar entre a verbosidade complexa e a síntese minimalista. Optando pela brevidade e a simplificação, poder-se-á propor como resposta uma só palavra: o serviço público de televisão é uma trincheira. E não se acuse a proposta de contaminação militarista, pois as mais notáveis trincheiras havidas ao longo dos tempos terão sido provavelmente trincheiras civis. Uma trincheira, pois. Perguntar-se-á para que defesa, para que combate. E o esclarecimento é fácil: para impedir que o quadro global da televisão de um país esteja inteiramente na mão de quem queira semear nele, às mãos cheias, o prazer tóxico da ignorância convencida, a mentira quotidiana como sinistro «erzatz» de informação, o vício da ficção audiovisual que injecta no público a falsificação do quotidiano, a avidez dos consumos inúteis ou de utilidade secundaríssima, a náusea e mesmo o desdém pela fruição cultural. Tudo isto e alguma coisa mais pode ser dito de outro modo: o serviço público de televisão é uma trincheira contra a redução de uma população inteira à condição de um enorme bando de entontecidos disponíveis para, sob efeito anestésico, suportarem diversas formas de efectiva escravização.

Um dia, quem sabe?

Poder-se-á objectar que uma trincheira assim nunca existiu no nosso País. Será verdade, embora tenha havido um breve lapso de tempo, depois de Abril de 74, em que terá estado perto de acontecer. A questão, porém, é que enquanto subsistir uma operadora de televisão cuja proprietária é a população em geral, isto é, o povo, os profissionais da intoxicação mediática não podem dormir descansados. Porque um dia, quem sabe?, os cidadãos telespectadores podem dar-se conta de que estão a ser enganados, de que os telenoticiários lhes mentem por afirmação ou omissão, de que a maioria dos chamados «opinion makers» não passam de consignatários de versões convenientes para uns quantos, que a estorietas que fascinam milhões não são tão ingénuas quanto parecem e de facto ocupam o lugar da veracidade eliminada. E, apercebendo-se disso, os tais cidadãos podem querer que essas e outras imposturas sejam escorraçadas da operadora de TV que afinal é sua. Mais: podem lembrar-se de exigir que «a sua televisão» ponha a verdade onde estava a mentira, a realidade onde estava a invenção cloroformizante, o prazer da fruição de bens culturais onde estava a viciação em subprodutos reles. A cumprir-se esta mutação, estaria erguida a trincheira contra a mistificação do público e o aviltamento dos gostos, isto é, estaria em funcionamento o tal serviço público de TV que os especialistas da manipulação, fazendo-se de parvos, alegam não saber o que é. Entretanto, porém congeminaram o assalto à RTP, lugar mediático onde um dia poderia ser erguida a trincheira contra a intoxicação ao domicílio. À eliminação desse risco, efectivo por muito remoto que hoje pareça, acrescenta-se decerto o duplo gosto de mais um ataque frontal ao património do Estado e da oportunidade de um negócio apetitoso, até escandalosamente apetitoso, para uns cúmplices privados. Mais ainda, porventura, o gosto especial que para as papilas da direita filofascista, ou simplesmente parafascista por vocação, tem a oportunidade de infligir mais um golpe no já tão depauperado património público. É ainda o gosto amargo de 74 a incomodá-los. É ainda a ilusão de que serão para sempre os donos do País.



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