Cumplicidades
Para além das menores ou maiores desgraças que cronicamente constituem os acepipes preferidos pelos telenoticiários portugueses, andam agora os chamados serviços informativos da TV muito entusiasmados com a guerra não declarada que desde há meses vem devastando a Síria. Que se note, ainda as operadoras portugueses de televisão não enviaram para os locais dos combates os seus enviados especiais, tal como aliás ainda por lá não estão militares portugueses (o tempo da entrada em cena de empresas da área da construção civil será mais tarde, quando chegar a hora da reconstrução do que foi arrasado), mas a fase actual permite, e sob certos critérios até recomendará, a participação de um certo telejornalismo na operação contra a Síria no específico sector da frente mediática.
Como se sabe, o que está em curso é uma cruzada orientada superiormente pelos Estados Unidos, acolitados pelos seus satélites europeus e utilizando também a secção do Departamento de Estado denominada ONU, alegadamente destinada a derrubar o presidente sírio, Bashar al-Assad, acusado de não ser tão democrático quanto convém a Washington. De, designadamente, não ser tão democrático quanto os petromonarcas da região que dão aos Estados Unidos todas as necessárias garantias de seguidismo e obediência política. Como o projecto democrático made in USA é sempre muito motivador, na frente ampla organizada contra o poder que resiste em Damasco há lugar para variadas presenças que incluem não apenas apoios da Turquia, da Arábia Saudita, do Qatar e de Israel, mas também a presença de participantes armados muito próximos da famosa Al Qaeda ou dela fazendo mesmo parte.
Não surpreende. Quando se trata de expandir o entendimento de democracia que tão encarniçadamente cultivam, os Estados Unidos não são nada esquisitos em matéria de recrutamento.
Na mesma trincheira
Trata-se, como é sabido por quem se deu ao trabalho de se informar a sério, de reforçar a hegemonia «ocidental» junto das fronteiras do Irão, de retocar a condição do Mediterrâneo como mar privado do capitalismo multinacional, de liquidar outras influências na região. Sem surpresas, o governo português está nessa, como esteve na sua activa cumplicidade com a guerra do Iraque, e é claro que onde está o governo português na sua condição de fiel aliado do amigo americano está também a orientação informativa dos media lusitanos, com o destaque habitual e merecido para as operadoras de TV.
Ora, foi exactamente num noticiário de uma dessas operadoras que se ouviu uma pérola informativa muito significativa do ponto a que já se chegou. Narrava-se o horror dos bombardeamentos, das destruições, dos massacres, e a locução off, que obviamente responsabilizava por isso o presidente Bashar, acrescentou claramente que tudo isso havia sido feito «com a cumplicidade da Rússia e da China».
De súbito, deixávamos de estar perante um relato jornalístico mais ou menos aceitável de tristes acontecimentos havidos num país estrangeiro para passarmos a ser destinatários de uma revivescência da velha propaganda dos tempos da Guerra Fria. Para mais, a palavra «cumplicidade» arrastava sugestões de criminalização. Como se tivesse sido o governo sírio a desencadear as hostilidades. Como se as cumplicidades não fossem muito mais evidentes quando se fala do fornecimento pelo «Ocidente democrático» do material de guerra utilizado pelo chamado Exército Sírio da Libertação, curiosamente coordenado desde Tripoli, na Líbia, por um antigo cúmplice de Bin Laden e da Al Qaeda, designadamente em velhas operações no Afeganistão.
Também como se o nosso País não mantivesse relações amistosas com a Rússia e com a China, assim empurradas como que para um sugerido banco de réus. Mas o responsável por aquele precioso pedaço de texto informativo pode reivindicar a prática de uma proeza não exageradamente fácil: colocou o noticiário da estação onde trabalha na mesma imaginária trincheira onde está a Al Qaeda. Merece qualquer coisa, talvez um prémio. Talvez, quem sabe?, um lugar de correspondente não na Síria, que é lugar escaldante, mas em Nova Iorque. Onde decerto estará muito bem quem muito bem se portar.