No reino da podridão…
«O Serviço Nacional de Saúde não tem a ver com o dinheiro, mas é assunto religioso. O SNS não existe, é uma ficção … Até os comunistas e os ateus cuidam dos pobrezinhos ! …O verdadeiro problema da Saúde é, antes, religioso e só a Pastoral da Saúde o pode resolver!»
(João Luís César das Neves, Opus Dei, catedrático da Universidade Católica e colunista dos jornais. Ex-assessor de Cavaco Silva. Maio de 2012).
«A igreja é uma defensora acérrima do Serviço Nacional de Saúde … Não basta pensar na pessoa só quando alguém está para morrer e levar-lhe a Extrema Unção... É necessário alargar a assistência espiritual e religiosa a toda a rede hospitalar do SNS...»
(Ana Jorge, anterior Ministro da Saúde do governo PS, considerada próxima do Opus Dei e da Companhia de Jesus).
«O Serviço Nacional de Saúde é uma conquista de Abril, um serviço universal e gratuito ou tendencialmente gratuito... Há quem espere receber o seu cadáver mas o Serviço Nacional de Saúde vai sobreviver!...»
(António Arnaut, pioneiro do SNS, ex- ministro socialista dos Assuntos Sociais, ex-Grão Mestre da Maçonaria ).
Poderia dizer-se, a iniciar um breve esboço da actual situação europeia, que a bruta queda a pique do capitalismo envolve não só a área social mas tudo o resto que caracteriza a civilização ocidental. O que se passa na área da Saúde é totalmente idêntico ao que marca a Segurança Social, o Trabalho, a Educação, a Economia, a Cultura, etc. Uma das causas centrais desta situação é que, uma vez mais, o grande capital falhou ao não se identificar com as leis básicas da História. Tentou globalizar à força o que é inglobalizável. Quis dividir para reinar e desprezou a indignação e a sede de justiça das classes exploradas. Mas está longe de conseguir atingir os seus intentos.
Se escolhemos para hoje o exemplo da Saúde foi porque recentemente, em Portugal, as forças da corrupção no poder não foram capazes de abrir brechas no grupo social que as enfrentou e que acabou por reunir à sua volta o apoio espontâneo e colectivo de multidões, em defesa das suas conquistas de classe e da ordem democrática.
É evidente que a gula do capital pela Saúde não surgiu por geração espontânea e, muito menos, em virtude da maldade intrínseca dos homens. O mercado da saúde nasce com a sociedade classista, evolui com as novas tecnologias públicas e privadas, instala-se solidamente à sombra da injusta distribuição social da riqueza e, com o andar dos séculos, muda de imagem mas não de conteúdo. Foi segredo cultivado por certas seitas. É agora «fetiche» político e comercial. E assim, ao invés do que o prof. César das Neves, fiel aos seus compromissos secretos afirmou, o problema da Saúde é político e não religioso. Cabe ao poder político institucional cumprir todos os princípios que a Constituição lhe impuser. Defender uma visão diferente é tentar corromper a Democracia como padrão de referência obrigatória.
Do mesmo modo, a dra. Ana Jorge pode ser tão obediente à sua igreja quanto pessoalmente o queira ser. Mas vir a público defender, como médica, o princípio de que «é necessário alargar a assistência espiritual e religiosa a toda a rede hospitalar do SNS», é atitude oca de sentido (já assim se faz por toda a parte) ou, noutro sentido, é palavra de ordem excessivamente ambiciosa. Quererá a igreja ainda maior poder do que já alcançou com a Concordata, com a Lei da Liberdade Religiosa, com o Voluntariado e com a Pastoral Sociocaritativa, com os privilégios das Misericórdias e das IPSS ou com os créditos que vier a obter com a Segurança Social, a Reforma Administrativa ou com novas troikas mais venenosas e cada vez mais impositivas?
O reino onde vivemos é o da podridão.
A recente luta dos médicos trouxe-nos a todos lições salutares. Por um lado, revelou a existência real, em Portugal, de uma classe coesa, democrática e fortemente unida.
Por outro lado, mostrou-nos um povo que por detrás de uma aparente indiferença ao acontecimento político se conserva alerta e pronto a mobilizar-se em defesa dos grandes ideais colectivos. Os êxitos da classe médica em defesa do SNS, não representaram qualquer vitória religiosa sobre o Mal. Mas deve assumir-se claramente que este combate teve um desfecho positivo e histórico: o povo português tem a noção daquilo que é maquinado contra si.
Dizia Lenine: «A valorização da experiência pelas massas é um processo imperceptível, penoso e lento … mas desempenha um papel muito mais importante do que muitos aspectos das políticas do Estado».
(continua)