Um país submerso em petróleo
«As petrolíferas devem finalmente pagar», exige a Amnistia Internacional. O apelo dirige-se sobretudo à Shell, a maior investidora no Delta do Níger. A Amnistia reclama à multinacional britânica o pagamento de um milhão de dólares como capital inicial. Tanto é necessário para iniciar uma das maiores acções de recuperação ambiental da atualidade: a limpeza dos derramamentos de petróleo na Nigéria.
As análises à água revelaram valores de poluição que excedem 900 vezes os limites oficiais
Onde antes sobravam peixes, não nada agora mais nenhum. O ecossistema está morto. Cardumes migraram para águas limpas e com eles levaram à falência o sector económico mais importante da Nigéria – a pesca. A Amnistia Internacional apela agora às petrolíferas que assumam a responsabilidade pelos danos causados ao longo de décadas de extracção de petróleo na região do Delta do Níger. O apelo baseia-se no relatório das Nações Unidas apresentado em Agosto de 2011. Trata-se de um relato pormenorizado dos valores de poluição no Delta do terceiro maior rio africano. No informe a ONU responsabiliza também o governo nigeriano pela catástrofe ambiental, já que a exploração dos oleodutos da região a investidores estrangeiros é concedida pela Companhia Nacional de Petróleo da Nigéria.
Em 1956 a Shell executou com sucesso a primeira perfuração na região do Delta. Naquela altura a população local, que vivia essencialmente da pesca e da agricultura, encheu-se de esperança de uma vida melhor. Em vez disso aumentaram pobreza e doenças: cegueira, deficiências físicas em recém-nascidos, cancro. Numa região que é tão grande como Portugal, apenas um em cada dois nigerianos tem acesso a água potável, constata a Organização Mundial de Saúde. As águas estão contaminadas com crude, o ar com gás.
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Em 2008 e segundo a Amnistia Internacional só na aldeia de pescadores Bodo na Província Ogoni no Sul da Nigéria verteram durante várias semanas 600 000 litros de petróleo diariamente nas águas fluviais. A Shell por sua vez afirma que este valor representa a quantidade total e não a diária derramada. A avaliação dos danos efectivos torna-se difícil. Petrolíferas e ambientalistas sustentam versões distintas. O certo é que segundo o relatório da ONU foram derramados nos últimos cinquenta anos mais de 300 milhões de litros de petróleo nos pântanos e cursos de água do rio Delta. Catástrofes ambientais como a de 2010 no Golfo do México ou o derrame de Exxon Valdez acontecem anualmente no Delta da Nigéria, asseguram ambientalistas.
As companhias petrolíferas culpam a sabotagem de rebeldes pelos vazamentos. Bandos criminosos danificam as condutas e roubam o crude para vendê-lo ilegalmente na beira da estrada ou no mercado negro dos países vizinhos, pobres em recursos minerais. Para John(*), proveniente da região e exilado na Áustria há vários anos, estes roubos são plausíveis: «um homem faminto é um homem furioso». No entanto seria errado atribuir a culpa somente à sabotagem dos locais.
As multinacionais petrolíferas que exploram no Delta – Shell, Exxon Mobil, ENI, Total e Chevron – juntamente com a companhia nigeriana de extracção de petróleo, usufruem dos recursos naturais da região como se esta fosse desabitada. As medidas de segurança são escassas ou ineficazes. As potências do «ouro negro» e o governo nigeriano ignoram ou descuram o dever de limpar devidamente os vazamentos, independentemente das suas causas ou de quem os provocou. O relatório da ONU demonstra que o saneamento levado a cabo pelas petrolíferas tem sido ou inexistente ou superficial. Entretanto o petróleo continua a verter e a segurança para a população a diminuir. Algumas das fugas nos oleodutos por limpar são ainda dos anos 50 e 60. São instalações velhas e enferrujadas predispostas a fugas, que se estendem por campos de cultivo e aldeias, próximas de zonas de habitação.
No plano de salvamento do Delta do Níger a ONU prevê que os estragos de maior porte nas condutas poderão ser remediados nos próximos cinco anos. Para que a região fique completamente limpa são necessários trinta anos e um capital inicial de um milhão de dólares. As empresas petrolíferas internacionais que usufruem do petróleo nigeriano devem pagar, sugere a ONU no informe apresentado. Por sua vez as multinacionais recusam-se a assumir a responsabilidade pela poluição ambiental e a pagar pelos danos causados ao longo de décadas de extracção.
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O paradoxo da situação é óbvio: as empresas do ramo petrolífero são as mais lucrativas do mundo. Em 2011 estas potências viram aumentar os seus lucros em 50 por cento em relação ao ano anterior. Para isso contribuem o aumento dos preços da gasolina e as isenções fiscais que usufruem empresas do ramo petrolífero nos EUA. Para pagar menos impostos estas empresas dão como pretexto os elevados custos que comporta a extracção do «ouro negro». Mas na verdade são os lucros que aumentam e não os custos. Como divulga um estudo recente da empesa de pesquisa de mercado norte-americana Facset, cinco das dez multinacionais mais lucrativas do mundo são petrolíferas. Com um lucro anual de mais de 30 biliões de dólares a Shell é a quarta empresa mais lucrativa do mundo. Em contrapartida os nigerianos do Delta, antigamente pescadores, vêem-se agora obrigados a comprar no mercado a preços exorbitantes o peixe importado dos países vizinhos. Famílias perderam trabalho e sustento. Locais morrem queimados ao tentarem retirar petróleo a baldes das condutas abertas.
Com uma esperança de vida de apenas 47 anos, os habitantes do Delta nem sequer sabem por que estão doentes, por que é que cada vez mais bebés nascem deficientes ou cegos. As análises à água potável feitas pela ONU revelaram valores de poluição através de benzol que excedem 900 vezes os limites oficiais.
«Quem falar sobre o homem branco e que ele leva o nosso petróleo, é silenciado», relata John. Por entre uma população silenciosa porém alguém se fez ouvir. O escritor nigeriano Ken Saro-Wiwa interveio desde os anos 70 a favor do ambiente e das populações locais. Em 1995 foi condenado à morte sob tortura e sem decisão judicial. Apesar de ter combatido pacificamente pelos direitos dos nigerianos e contra a exploração das petrolíferas foi enforcado juntamente com outros oito activistas. Anos mais tarde, em 2009, em Nova Iorque e por ocasião de um procedimento extrajudicial a Royal Dutch Shell comprometeu-se a pagar 15 milhões de dólares como indemnização às famílias dos activistas. Naquela altura um porta-voz da multinacional justificou o acordo como «um gesto humanitário». Porém para Celestine Akpobari, activista de direitos humanos da organização não governamental Social Action (Acção Social) do Delta do Níger e aluno de Saro-Wiwa, este acordo não é nada mais nada menos do que uma confissão de culpa por parte da Shell.
Estimativas demonstram que desde 1960 a Nigéria vendeu «ouro negro» ao Ocidente no valor de 600 biliões de dólares. É o maior produtor africano e possui um petróleo com pouco chumbo e por conseguinte fácil de refinar, claramente cobiçado pelas extractoras. No entanto da tão aguardada prosperidade que traz o «ouro negro» só beneficiam alguns. 70 por cento dos nigerianos vivem com um dólar por dia. A taxa de analfabetismo ronda os 80 por cento. «Até as mobílias alguns chegam a vender para pagar as contas da farmácia», conta John. A rede eléctrica é de tal maneira obsoleta que por vezes aldeias inteiras permanecem às escuras durante semanas. Porém como John relata: «nas mansões dos brancos nunca falha a luz».
Segundo a Amnistia Internacional as condições de vida dos nigerianos do Delta pioraram desde o desaparecimento do escritor Ken Saro-Wiwa. Jornalistas e activistas que ousam tocar no assunto são ameaçados, espancados, no pior dos casos silenciados, afirma a Amnistia Internacional.
*A verdadeira identidade do nigeriano exilado na Áustria é do conhecimento das jornalistas.