Maria Keil

O mundo é deslumbrante, mas não é bonito

Manuel Augusto Araújo

Image 10843

Maria Keil, uma artista multifacetada, morreu no mês passado, quase centenária. Era uma mulher de ar delicadíssimo e doce. Um ar frágil que ocultava uma enorme energia, ainda há uns quinze anos atravessava o jardim do Príncipe Real a correr para apanhar o eléctrico ou era vista na Ler Devagar a martelar pregos nas paredes para pendurar os seus Anjos do mal : demos - demónios - diabos, etc.. Olhava-nos com um olhar brilhante, agudo, inteligente sem qualquer gota lamecha porque sabe que «o mundo é deslumbrante, mas não é bonito», como disse numa entrevista.

Nasce em Silves, na altura um centro corticeiro florescente, onde a exploração brutal é enfrentada pelos trabalhadores corajosamente. Uma luta revolucionária tão forte e continuada que assombra o regime incapaz de os vergar, apesar de todo o arsenal repressivo de uma tremenda ferocidade. Salazar, derrotado pelo ímpeto dessas lutas, opta por uma solução radical: fecha as fábricas todas, dispersa-as pelo país. Quase de um dia para outro Silves que era uma terra rica, de actividade febril, um centro revolucionário, fica parada no tempo. Só as lutas continuaram com outras formas.

É esse o ambiente em que nasce e vive Maria ainda longe de ser Keil, filha de um industrial da cortiça, afectado por essa situação. A vida não lhe será fácil. Os pais separaram-se em rota de colisão. Vive com os avós maternos no campo as fantasias de criança até que, aos sete anos é raptada a mando do pai para ir viver num casarão vazio cheio de regras, «uma casa burguesa que até sufocava. Ainda ouço as vozes, endireite essas peúgas, vá já lavar os braços». Isto dura até aos quinze anos quando vem para Lisboa para a Escola de Belas-Artes.

Julga que se vai abrir uma porta do céu, engana-se. O inferno vai continuar. Fica em casa do irmão da madrasta, um militar reaccionaríssimo que tinha uma enorme fotografia do Sidónio Pais na sala de visitas. Foi parar a Belas-Artes, nem sabe bem como, depois de andar como as meninas mais prendadas desse tempo a aprender francês e a tocar piano, com um professor que lhe batia nos dedos com um lápis, gritando: «pensas que é a fazer bonecos que se ganha a vida, pensas?». Equivocava-se redondamente esse mestre de notas musicais incapaz de lhe ensinar uma nota, sem lhe tirar o gosto pela Lucia de Lammermor, que ouvia num gramofone em casa dos pais. Ecos bruxeleantes de «uma infância muito má».

Na Escola de Belas-Artes, copiavam-se florões, estátuas de gesso. Pó por todos os lados, sobretudo dentro das cabeças dos professores. Os que o tinham limpo eram raríssimos, dificilmente sobreviviam. Maria anda por lá aplicadamente a encher cadernos de esboços e cruza-se com jovem que vai para escola de mota, um luxo. É Francisco Keil do Amaral. Deixa a escola, casa-se aos 19 anos. A Vida muda radicalmente. É um corte total com o passado. Do mundo anterior nunca mais soube. «Tenho a impressão que me falta um bocado cá dentro».

Entrava num novo mundo e o que não aprendera na escola foi aprender por si própria através dos horizontes que Keil do Amaral abre, ele que vivia no meio de toda a gente que interessa nos meios artísticos. Descobre um novo mundo nos cafés do Chiado, onde tertúlias de artistas convivem. Maria, agora já Keil, sabe pouco ou nada. Ouve, absorve tudo como uma esponja que recolhe para elaborar esses saberes, e com eles renascer. Começa a desenhar para publicidade no atelier de José Rocha, onde tem um encontro artístico decisivo com um dos homens que virou do avesso o desenho gráfico que se fazia, Fred Kradolfer, um suíço que tinha desembarcado em Portugal no decurso da guerra e que se tornou num dos personagens centrais da cena artística portuguesa na época. Com ele e com Carlos Botelho, Ofélia Marques, Bernardo Marques faz a sua verdadeira aprendizagem.

Maria Keil, enquanto desenha, também pinta. Faz retratos, naturezas mortas. Faz mesmo uma exposição numa loja de móveis, galerias de arte era coisa que não existia. Apesar do êxito, deixa de pintar. Ironiza: «Pego num desses grandes livros de arte, com todos aqueles grandes pintores e aquilo não me emociona. O que me emociona é a forma das coisas. Se tiver um quadro bem composto, gosto. Mas para quê pintar uma senhora nua? Vestida ainda pode ter umas sedas. Não é uma questão de pudor. Só constato que a arte está cheia de mulheres nuas. É esquisito.(…) Não tenho prazer nenhum em pintar. Desenhar sim. Nem sempre gosto de ver quadros nas paredes. Há paredes tão bonitas.»

Antes de deixar de pintar, porque considera que já há pintura a mais, ganha, com 27 anos, o prémio Revelação Souza-Cardoso com o seu Autoretrato.

Não pinta, mas espalha o seu enorme talento na tapeçaria, no azulejo, no desenho, na ilustração, nas artes gráficas, na gravura. Ilustrou quase todos os grandes escritores portugueses além dos livros que escreveu e desenhou. Um trabalho notável, ímpar. Como ímpar foi o seu trabalho em azulejo em que é uma das grandes inovadoras e figura incontornável na renovação da azulejaria portuguesa. O seu trabalho nos painéis no bloco de edifícios da avenida Infante Santo, projecto de arquitectura de Alberto Pessoa e João Abel Manta, os que realizou para as primeiras linhas do Metropolitano de Lisboa, projecto seu marido Francisco Keil do Amaral, são trabalhos paradigmáticos, esteticamente inovadores, pioneiros pela integração que Maria Keil faz entre a obra de arte e a arquitectura. Ao longo da sua vida fez algumas exposições individuais, participa em todas as Exposições Gerais de Artes Plásticas marcando a sua oposição enquanto artista e mulher ao fascismo.

Esteve presa em Caxias. «Fomos 50 pessoas ao aeroporto esperar D. Maria Lamas, que vinha de um congresso da Paz. Parece que era um crime terrível. Assim que o avião parou, as pessoas que estavam à espera dela foram para a cadeia. Não havia motivo nenhum. Era só exagero e, se calhar, medo. Fomos para dentro de uma carrinha e levaram-nos para Caxias. Ficámos lá um mês.

Foi uma boa experiência. Éramos 12 mulheres fechadas numa cela. Fartámo-nos de trabalhar. Algumas mandaram vir os livros e os cadernos, com os quais estudavam e ensinavam umas às outras. Eu pedi trabalhos que tinha em mãos em casa. Aquilo não foi doloroso, o que não quer dizer que as coisas sejam assim. Porque havia lá outros presos, nomeadamente mulheres, que comunicavam com pancadinhas. Algumas de nós que já tinham estado presas, conheciam aqueles sinais e traduziam.

Havia lá mulheres completamente isoladas, mas sabíamos muito bem o que lhes faziam. É uma coisa horrível. Aquela gente não merecia o mais pequeno respeito. Aquilo marcou-me, porque entrei no sítio e vi as coisas como elas eram.

Não tive uma actividade política activa. Fazíamos o que era possível, sem nos envolvermos em células ou coisas similares, porque não éramos capazes de ter esse grau de envolvimento. Dávamos o apoio possível. Não tínhamos condições, nem conhecimentos, nem técnicas de luta que eram necessárias. Nesse sentido sabíamos que só poderíamos fazer mal se fossemos para coisas muito activas. »

Aos 97 anos, morreu Maria Keil, uma mulher afável que sem muito ruído, com grande tranquilidade, foi uma artista que foi sempre mais longe na exploração das formas, das linguagens, das poéticas.



Mais artigos de: Argumentos

Os gestores do caos mundial ...

«O  Congresso de Deputados de Espanha rejeitou a criação de uma comissão de inquérito à crise financeira e ao caso do Banquia. A proposta foi recusada pelos votos dos deputados da maioria parlamentar de direita» (Agência Lusa, 13.6.012). «Muitos leigos...

Uma espécie de segredo

Digamos que a pouco e pouco, mas a um ritmo que progressivamente se veio acelerando, a televisão tem vindo a informar-nos de que foram erradas a adesão portuguesa ao euro e mesmo a entrada de Portugal nesta suposta «Europa unida» dominada pelo capitalismo sem quaisquer princípios mas com...