Decepção, decepções

Correia da Fonseca

Quase de súbito, o tema dominante abordado pelos canais portugueses de TV, abertos ou não, deixou de ser o Caso Relvas, espécie de thriller que, como todas as estórias que tresandam a podridão, atrai a atenção das grandes massas telespectadoras, para passar a ser o percurso desejavelmente épico da selecção nacional de futebol, dita «a equipa de todos nós», em princípio destinada a escrever, ainda que com os pés, mais uma página certificante do antigo destino dos portugueses de impressionar o mundo pelos seus feitos. O dossier Relvas não terá ficado arquivado ou esquecido, sucede apenas que pode esperar um pouco, talvez até amadurecer, pois um mais forte centro de interesse se alevanta. Entretanto, até pode acontecer que alguém espere, nos bastidores, que alegrias vindas da longínqua Ucrânia, se as houver, dissolvam um pouco a força da indignação generalizada que o comportamento do ministro Relvas suscitou. E não será esperar de mais: é sabido que o futebol, sobretudo quando administrado em doses internacionais, é um excelente analgésico para dores de vária ordem, ainda que seja excessivo esperar que ele seja totalmente eficaz perante casos de fome instalada, miséria permanente e abandono na velhice. De qualquer modo, o caso é que a televisão, agora mais do que nunca justificando a qualificação de lusitana, passou a mostrar-nos muitos e fortes sinais de patriotismo expresso através de bandeiras, cachecóis, trajos dominados pelas cores nacionais (onde, curiosamente, a par do verde nunca parece estar o vermelho que a República colocou na bandeira, mas sim o encarnado que é a cor do Benfica). Neste quadro, a aproximação dos dois últimos jogos «de preparação» do onze nacional gerou uma larga expectativa positiva: os nossos jogadores são bons, da equipa da Macedónia pouco ou nada se ouve falar, a equipa da Turquia estava longe de meter medo. Além de que os encontros se realizariam em Portugal, dado propício a reforçar o optimismo fremente com que os jogos eram aguardados. E a tudo isto e muito mais a televisão dava um destaque a que parecia só faltar uma banda musical à base de clarins, para reforçar o clima heróico.

 

Olhos, cabeça, realismo

 

Aconteceu, porém, o que se sabe: a equipa nacional empatou sem golos com a Macedónia, país de que a maioria talvez nem soubesse a existência como país independente, e perdeu com a Turquia por dois golos de diferença. Este duplo golpe terá sido ou não suficiente para devolver a expectativa nacional para os níveis de uma maior razoabilidade, mas com um pouco de optimismo talvez possamos esperar que tenha gerado o reconhecimento de que, em matéria de Euro 2012, se estava a infiltrar em muitos milhares de portugueses um triunfalismo que nada justifica e que, como bem se compreende, pode converter-se em negras decepções nas próximas semanas. Aqui, como em qualquer outro assunto, é conveniente ter olhos para ver e cabecinha para pensar; aqui, como em qualquer outro assunto, é bom precavermo-nos contra triunfalismos que a realidade objectiva não sustenta e podem ser pagos por preços não previstos no início dos processos. É certo que temos bons jogadores, que um deles tem a fama (talvez já não consensual) de ser o melhor do mundo e por vezes até exibe atitudes a condizer, é mesmo provável que o Céu nos contemple e esteja decidido a proteger-nos, mas ainda assim convém não esperar o que não é esperável e abrir portas para desânimos ácidos só possíveis em consequência do irrealismo anterior. No que será uma estratégia preventiva, lembremo-nos de que nem mesmo vinte e três craques, se todos o fossem, garantiriam uma grande equipa, que é uma outra coisa. Vivemos num País onde, talvez por força de tristezas e sujeições antigas, o triunfalismo pega de estaca mesmo em terreno difícil: não permitamos que ele nos engane agora, perante o Europeu de Futebol. E se, como é provável, as próximas semanas nos forem amargas no futebol «de todos nós», recusemo-nos a fazer um injustificado luto e regressemos, ainda que a TV então não nos ajude a isso, ao Caso Relvas e, mais amplamente, ao Caso de Portugal e de um governo que o arruína. Porque aí, sim, joga-se o que é de facto importante para todos nós.



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