Os fidalgos
Miguel Relvas domina a actualidade do burgo lusitano, não havendo chafarica noticiosa, das confidenciais às «de referência», que não abra noticiários ou ocupe primeiras páginas com a personagem.
Surgindo no poder colado ao primeiro-ministro Passos Coelho e assumindo-se porta-voz governamental de tudo e mais um par de botas, Relvas cedo começaria a ser visto como um espécime rasputiniano por trás do trono Passos troikês.
Contudo, tal majoração não lhe acarretaria nada de malévolo ou injurioso, para além da chacota pública, anónima e sibilante que a adjectivação convoca.
O pior foi o resto – e o resto começou a desenovelar-se há dias, quando o jornal Público denunciou pressões e ameaças pessoais alegadamente feitas pelo ministro Relvas sobre uma jornalista, para impedir a publicação de um trabalho que o relacionava com o «ex-espião» do Serviço de Informações e Segurança (SIED), Jorge Silva Carvalho, por seu lado há largos meses envolvido em escândalos sucessivos sobre alegada utilização das suas funções (ou influência) de direcção no SIED para contrabandear informações secretas a favor de interesses privados, nomeadamente os da sua futura «empregadora», a empresa Ongoing.
A partir daqui o novelo desenrolou-se, primeiro com o ministro Miguel Relvas a garantir, perante uma comissão parlamentar, que só conhecia Silva Carvalho de dois ou três «encontros sociais» e, depois, com uma sequência vertiginosa de trapalhadas: espionagens à vida privada de Pinto Balsemão, demissão de um adjunto de José Relvas por ligações a Silva Carvalho e um sem fim de conexões e intrigas gravitando à volta do ex-espião, mas tudo confluindo na crescente suspeição das declarações feitas por José Relvas sobre o assunto, com a gravidade de terem sido proferidas sob juramento, em sede parlamentar.
Neste quadro, parece difícil que Miguel Relvas se aguente no Governo – e, se tal acontecer, estará «meio morto», como vaticina o seu correligionário Rebelo de Sousa.
Todavia, Relvas está longe de ser o solitário bode expiatório da situação. Como «número dois» do Governo, a polivalência e preponderância política da função atinge também (talvez «de morte»?) todo o Executivo, desde Passos Coelho ao rebanho de secretários de Estado. Isto porque um «número dois», por definição, é o elemento governativo da confiança do primeiro-ministro e, por isso mesmo, a personagem a quem é confiado o acompanhamento minucioso da governação e delegado um conjunto de poderes, de que presta contas apenas ao chefe do Executivo.
Por isso, é inadmissível que todas as tranquibérnias atribuídas a Miguel Relvas tenham ocorrido sem conhecimento e aprovação do primeiro-ministro, o que o coloca – e ao Governo que chefia – no olho deste furacão.
O que faz do Governo de Passos Coelho um organismo espúrio no regime democrático, travejado a expedientes sem freio nem medida e actuando no País como fidalgos numa coutada.