O mergulho

Correia da Fonseca

Uma reportagem na TVI24 assinada pelo jornalista Pedro Veiga, «Caixote de Luxo», trouxe-nos uma revelação curiosa: a da existência de uma actividade profissionalizada, ou quase, sob uma designação situada entre a ironia e a denúncia: «mergulhadores do lixo». Trata-se de pequenas equipas que ao princípio da noite acorrem ao exterior dos hipermercados e se aplicam a retirar dos contentores do lixo vultosas quantidades de bens alimentares com razão ou sem ela considerados em bom estado para o consumo. Não, é certo, para o consumo de qualquer camada da população, mas sim para os segmentos ditos carenciados, isto é, para aqueles que a fome todos os dias visita ou ronda. São, segundo números que colhi na televisão embora não nesta reportagem, entre perto de quinhentos mil a um milhão de cidadãos portugueses de todas as idades, ainda que com predominância dos níveis etários mais avançados, como aliás bem se compreende: as crianças são mais bonitas e portadoras do futuro, para elas sempre é mais fácil arranjar qualquer coisa que lhes modere a fome, ao passo que os velhos são tendencialmente mais feios, já viveram muitos anos, cansam-nos com as suas rabugices, não é fácil pegar-lhes ao colo nem dá gosto embalá-los. Mas passemos sobre este aspecto e fixemo-nos no fundamental: há, infelizmente sem sombra de dúvida, muita gente assediada pela fome nesta boa terra de Portugal, pelo que bem se pode dizer, utilizando uma linguagem actualizada, que há mercado para a actividade dos «mergulhadores do lixo» que, sublinhe-se, a julgar pelo que a reportagem nos contou não serão movidos pela intenção do lucro nem pela necessidade de subsistência própria, mas sim pelo generoso desejo de minorarem a fome que por aí grassa.

 

Sombras na madrugada

 

A reportagem de Pedro Veiga não se demorou excessivamente na averiguação da qualidade dos produtos recolhidos pelos «mergulhadores do lixo» nem nas razões do que seria um chocante desperdício de bens alimentares se não fosse a sua intervenção. Admita-se, pois, que da recolha por eles feita e da subsequente distribuição não resultam doenças, sendo aliás provável que seja mais fácil suportar uma ocasional dor de barriga com diarreia acoplada que o quotidiano desconforto da fome. Ainda assim, porém, não é fácil nem sequer legítimo que nos esquivemos ao choque de vivermos num país onde milhares de cidadãos (a reportagem falou-nos de centenas de famílias, pelo que é fácil fazermos as contas) se alimentam no todo ou em parte das colheitas realizadas nos contentores. De resto, embora o trabalho de Pedro Veiga se tenha centrado nos contentores dos hipermercados, bem sabemos, até por esporádicas informações que fugidiamente a televisão nos tem prestado, que muitos portugueses não enquadráveis na classe semiprofissional dos «mergulhadores do lixo», se dedicam à busca de produtos ainda supostamente alimentares em contentores que de modo nenhum justificariam a qualificação «de luxo». Esses são «mergulhadores» em puro regime de amadorismo, eufemismo aqui usado para não referir o estado de imperiosa necessidade, e é fácil que os surpreendamos na sua faina se percorrermos as ruas entre a meia-noite e os alvores de cada madrugada. Avistá-los quando de uma nossa eventual passagem é, inevitavelmente, um choque: não estávamos habituados àquele espectáculo, àquela por vezes quase indistinção entre homens e bichos. Bem sabemos, ainda que só por ouvir dizer, que noutros países, sobretudo se geograficamente distantes, acontece o mesmo ou ainda pior. Mas pensávamos que entre nós isso nunca viria a acontecer, que nunca haveríamos de coabitar com a prática do «mergulho» como actividade já rotineira, que nenhum governo português empurraria concidadãos a mergulharem num tão desumanizado nível de miséria. Mais: sabemos ou julgamos saber que nesses países nunca aconteceu um 25 de Abril. E de tudo isso, porventura de alguma coisa mais, apercebemo-nos de que o Portugal actual é sem dúvida um país traído. Pelo que se torna natural que perante um quadro em que «não há só gaivotas em terra», para citar aqui o recado cifrado que há décadas nos enviou o poeta, dentro do mais comum dos cidadãos surja «um homem que se põe a pensar».



Mais artigos de: Argumentos

A coroa espanhola: sexo, drogas e... corrupção

A Casa Real Espanhola é constituída pelos reis, os príncipes herdeiros e as outras irmãs, incluindo o marido de uma e os filhos de todos. Recebe anualmente, como chefia do Estado espanhol, uns nove milhões de euros, de que não tem que apresentar contas...

Os «Tabus»

O nome, «Tabus», poderia ser imediatamente reconhecido como uma artimanha política, coisa de esconder, mordaça de palavras ou de informações que a seu tempo virão, por enquanto, senhoras e senhores, caros jornalistas, a questão é...