... E a vida

Francisco Mota

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Para o Balta(sar), mi compañero del alma, mi amigo

Já tive ocasião de informar os teus pais que nos comunicávamos por métodos que eles, tão modernos, não podem entender. Tu não lhes digas nada. Eles se quiserem que nos entendam.

Queria dizer-te os meus planos para os próximos anos. Entendo que apesar de inteligente haverá algumas coisas que não te sejam familiares. Apesar de tudo tens oito meses de vida e não sabes tudo. Por isso te proponho que, nos próximos anos, vamos falando e conhecendo melhor quem és tu e quem sou eu. Vai correr bem. Quando tiveres já uns anos e depois de termos começado a discutir as coisas que te preocupam e as dúvidas que eu também tenho, sobre isto da vida e do futuro, proponho-te uns passeios para conheceres esta Lisboa, que não é só a Baixa, Alvalade, Avenida de Roma e Campo de Ourique, ainda que eu tenha por algum destes sítios um carinho especial. Temos que ir, amigo, a sítios como Poço do Bispo, Marvila, Chelas, o Vale Escuro e aí verás como era Lisboa ou como continua a sê-lo até que se acabe a crise da construção e os inimigos da cidade destruam os últimos olivais, as últimas quintas que há em Lisboa. Aí começaremos a falar dum escritor, Eça de Queiroz, que terás que ler porque muitas coisas dos seus livros se passam entre esses olivais. Talvez me perguntes, porquê ver casas velhas e destruídas, e eu te direi que nessas casas velhas viveram pessoas que cultivavam os seus campos, como se estivessem no Ribatejo, nas Beiras ou em Setúbal. Aí viveram, pelo menos literariamente, personagens do Eça e durante anos foi o campo à porta da cidade, sonho de toda a gente, ainda hoje. Também podemos subir às Salésias e aos bairros interiores de Belém e Ajuda, mas aí a paisagem, ainda que muito calma é diferente, mais urbana. A vantagem de estar aí é que podemos descer aos pastéis de Belém e comprar meia dúzia. Tu podes comer dois, porque os teus pais não estão a ver, eu como um e podes chegar a casa com três e dizer que é um para cada um. É mentira, mas eu protejo-te, como me protegeram a mim, quando era pequenito. Além disso os pais sabem que serão enganados quando se juntam o avô e o neto. A propósito queria dizer-te que entre nós não há avôs e netos. Eu chamo-me Xico e tu Balta e tratamo-nos por tu.

Quando algum dia viajarmos ao estrangeiro queria mostrar-te o 202 dos Campos Elíseos, sítio onde teoricamente existia o palacete do «meu Jacinto» como dizia o seu grande amigo Zé Fernandes. Aí se passa uma boa parte do romance «A cidade e as serras» do Eça. A tua bisavó Lena, quando vivia em Paris, subiu a grande avenida até ao 202 e, como era de esperar, viu um grande edifício no sítio onde nunca esteve o Palacete do «meu príncipe Jacinto». Depois destas casas que nunca existiram vou mostrar-te a casa do meu amigo, também chamado Zé Fernandes, que com a sua companheira Julieta emigrou para França e em casa de quem eu e a tua avó Luz ficamos muitas vezes. Primeiro vamos ao bairro rico de Paris, o 16.º, e procuraremos a Rue Molitor. Ainda me lembrarei daquela casa e da rua e vamos ver onde dormimos e nos rimos com os amigos. Depois vamos à Place de La Madeleine, sítio fino, muito fino, lojas ricas para gente riquíssima, onde num canto nobre e sóbrio viviam os nossos amigos. Tudo isto, amigo, para te iniciar na vida das emoções, nas recordações belas do passado, no prazer de ler ou estar dentro de poemas.

E já que estamos em Belém, que tal se formos comer um peixinho? Estás de acordo? Então entremos no Restaurante da Associação da Vela do Centro, que está mesmo em frente do Tejo e tem dos melhores peixes que se comem em Lisboa. «Ó Xico, tu conheces os empregados e o patrão?» «Sim companheiro, porque já cá vim muitas vezes e respeito o seu trabalho e eles o meu apetite. Vamos ver os peixes». «Alguns são muito grandes». «Sim e vamos escolher um aqui com o patrão. Pronto já está! Uma boa posta de garoupa que agora nos vão grelhar no lume de carvão». «O que é grelhar?» «Anda, vamos à cozinha e pedimos que te mostrem. Vês a posta que escolhemos está em cima daquela rede chamada grelha e vai-se cozinhando devagar. Quando estiver dum lado eles viram e está um pouco mais do outro lado. Convém que o peixe não se seque demasiado porque perdia a gordura e a água que tem dentro e fica uma coisa seca e sem graça. Entretanto pedimos as bebidas. Para mim vinho branco do Douro e para ti?» «Não sei talvez água ou um sumo. Tu dizes que as colas são água suja». «São mas se queres podes beber. És tu quem tem que chegar a essas conclusões. Eu não te obrigo a nada». «Então sumo!»

Vamos comendo estes peixinhos pequeninos fritos, joaquinzinhos, e estes mexilhões em salada. «Se não gostares dalguma coisa, não comas! Só estás obrigado a provar e ver que gosto fica na tua boca e na tua cabeça. Chegou a garoupa. Vês como está dourada e se abrirmos, a carne não está seca. Vou-te arranjar um pouco para ti e juntar um pouco de açorda, uma batata cozida e grelos. Que tal?» «O peixe é muito bom e esta papa do que é?» «É de pão e chama-se açorda e no cimo tem um pouco desta erva verde, chamada coentros, que já viste na nossa casa». «Gosto das comidas que comemos e gosto de ver tanta água, com uns barquinhos à vela». «O que deves fazer é dizer aos teus pais para daqui a pouco tempo te inscreverem para aprenderes a navegar nesses barquinhos. Eu não sei, mas muitos dos teus tios, primos e o teu bisavô António gostam muito de andar nos barcos. Agora que já pagámos damos um passeio pela margem do rio. Já notaste este cheiro?» «Sim, parece que cheira a mar!» «É o mar porque o vento vem desse lado».

«Ó Xico, o que é o comunismo? Os meus pais dizem que tu és comunista!» «Sim, é verdade e eles também são, talvez de maneira diferente da minha. A tua avó Luz também é. Somos pessoas normais, com ideias claras sobre a vida e o mundo. Outro dia falaremos disso, porque vai levar-nos um tempo para que entendas tudo bem. No próximo almoço». «Está bem, fico à espera».

«Agora a próxima surpresa vai ser eu e tu fazermos um almoço para eles todos. Teremos que ir ao mercado, escolher e comprar coisas e depois arranjá-las e cozinhá-las. Mas isto, camarada fica entre os dois. Nem uma palavra. Vais ver a cara deles». «Boa, vai ser um dia grande!»



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