Uma arma a não esquecer

Correia da Fonseca

Foi, no História, um dos muitos canais que integram a panóplia distribuída por cabo, um programa acerca da repressão cultural durante a ditadura fascista. Nele se sucederam a memória de diversos episódios significativos e os depoimentos de alguns que participaram no combate surdo, muitas vezes com recurso a estratagemas vários, que visava fazer passar para lá das barreiras censórias a notícia de factos importantes ou o testemunho dos que se empenhavam em desmentir as imposturas. Tratava-se de contrabandear através de uma espécie de arame farpado constituído pelas diversas formas de censura, algumas das quais aliás estão hoje regressadas, contribuições para uma visão lúcida do mundo e da vida, isto é, para a organização de uma cultura sem grilhões na consciência individual de cada cidadão. Era, escusado é dizê-lo, uma outra e específica forma de resistência. E foi neste contexto que surgiu no documentário uma referência explícita à «função social da cultura», quer dizer, à intervenção directa da cultura como municionamento da luta pela construção de sociedades justas, esclarecidas e verdadeiramente livres. Este entendimento opõe-se a um eventual preconceito que atribui à cultura uma espécie de função meramente complementar e quase decorativa, como que um luxo só adequado a uma franja minoritária das camadas dominantes. Este equívoco é ainda um subproduto da mistificação ideológica com que as mais amplas camadas populacionais são constantemente bombardeadas e, por isso, é imperioso desmenti-lo. A cultura pode e deve ser mais uma arma ao serviço dos povos e da sua emancipação. Poderá mesmo dizer-se, talvez, que é a peça só supostamente complementar que permite regular e afinar a pontaria no decurso dos combates.

 

Os que ficaram

 

É neste quadro que plenamente se revelam a importância da presença de trabalhadores intelectuais nas fileiras do Partido Comunista Português e o papel que naturalmente lhes está destinado. É um capítulo, chamemos-lhe assim, que implica questões pouco fáceis, fórmula esta aliás discutível, pois é duvidoso que haja questões fáceis no caminho para a construção do futuro. Houve um tempo, sobretudo antes de Abril e no período que imediatamente se lhe seguiu, em que podia dizer-se com estreita margem de erro que se situava na área do PCP a maior parte dos intelectuais portugueses, militantes do Partido, «compagnons de route» como diria o dr. Soares ou apenas simpatizantes. Porém, a emergência da maré contra-revolucionária, a cada vez mais intensa propaganda anticomunista, a derrota da URSS e também em alguns casos a tentação de «tratar da vidinha», terão dizimado a ala intelectual do PCP sobretudo, suponho, nas áreas que têm a ver com a literatura e as artes. Pouco depois de Abril, João Abel Manta publicou aquela série de cartoons notabilíssimos que todos ou quase todos nós conhecemos, e a legenda de um deles advertia-nos contra os oportunistas dizendo: «Cuidado com os penduras!» Talvez, talvez, o PCP não tenha escapado inteiramente a essa praga, mas se assim foi o fenómeno não terá sido tão grave quanto pode parecer: é de crer que ficaram os mais firmes, os mais convictos, e nessa medida os mais apetrechados para a contribuição que lhes cabe dar para a tarefa comum. Para isso, naturalmente, há que se organizarem e, antes ainda, que se mobilizarem interiormente. É que não bastam essas duas condições prévias, a de serem intelectuais e de serem comunistas, é preciso que as suas específicas capacidades sejam postas no terreno onde o combate decorre. E o combate decorre exactamente na área da tal «função social da cultura» de que nos falou, embora de passagem, o documentário do canal História, como que a afirmar tacitamente que a televisão ainda serve para nos lembrar coisas importantes, por pouco que o pareça. Pelo que, já se vê, convém estar-lhe atento. Ainda que munido de todas as prevenções adequadas.



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