Engels a Franz Mehring (em Berlim)
Londres, 14 de Julho de [18]93
Caro senhor Mehring,
Só hoje venho agradecer-lhe a Lessing-Legende (1) que amavelmente me mandou. Não queria enviar-lhe uma nota de recepção do livro meramente formal, mas dizer-lhe também, ao mesmo tempo, algo sobre ele, sobre o conteúdo dele. Daí o atraso.
Começo pelo fim –Über den historischen Materialismus», onde V. reuniu as coisas principais excelentemente e, para qualquer [pessoa] imparcial, convincentemente. Se encontro algo a censurar é que V. me atribui mais mérito do que me cabe, mesmo se eu entrar em conta com tudo o que possivelmente eu teria encontrado autonomamente – com o tempo –, mas que, porém, Marx, com o seu rápido coup d’œuil (2) e visão de conjunto [Überblick] mais ampla, muito mais depressa descobriu. Quando se teve a sorte de, durante quarenta anos, trabalhar em conjunto com um homem como Marx, habitualmente, não se é tão reconhecido, durante a vida deste, quanto se crê que se merece; mas, uma vez morto o maior, facilmente o mais pequeno é sobrestimado – e parece-me ser agora, precisamente, o meu caso; a história porá finalmente tudo isso em ordem, mas até lá, felizmente, desaparecerei e não saberei mais nada de nada.
Aliás, quanto às coisas de Marx e minhas, só falta ainda um ponto que, porém, regularmente também não é suficientemente posto em relevo, e em relação ao qual nós os dois temos igual culpa. A saber: nós os dois pusemos – e tínhamos que pôr –, primeiro, o peso principal na dedução [Ableitung] das representações ideológicas – políticas, jurídicas e outras –, e das acções [Handlungen] mediadas por essas representações, a partir dos factos económicos fundamentais. Ao fazê-lo, negligenciámos, então, o lado formal relativamente ao [lado] do conteúdo: a maneira como essas representações, etc., são levadas a cabo. Isto deu, pois, aos adversários a bem-vinda oportunidade para mal entendidos ou distorções, de que Paul Barth é um exemplo flagrante (3).
A ideologia é um processo que, com efeito, é efectuado com consciência pelo chamado pensador, mas com uma consciência falsa. As forças impulsionadoras [Triebkräfte] propriamente ditas que o movem permanecem-lhe desconhecidas; se não, não seria, precisamente, processo ideológico nenhum. Ele [o pensador] imagina, portanto, forças impulsionadoras falsas ou ilusórias. Porque o [processo] é um processo de pensamento, ele deduz tanto o seu conteúdo como a sua forma do puro pensar, quer do seu [pensar] próprio quer do dos seus antecessores. Ele trabalha com mero material de pensamento [Gedankenmaterial], que, sem dar por isso, ele toma como engendrado pelo pensar, e que, ademais, não investiga ulteriormente [se tem] uma origem mais afastada, independente do pensar; e, decerto que, para ele isso é evidente, uma vez que, para ele, todo o agir [Handeln], porque mediado pelo pensar, [lhe] aparece também fundado, em última instância, no pensar.
O ideólogo histórico (histórico [historisch] deve simplesmente estar aqui, resumidamente, por político, jurídico, filosófico, teológico, em suma, por todos os domínios que pertencem à sociedade e não meramente à Natureza) – o ideólogo histórico tem, portanto, em cada domínio científico uma matéria [Stoff] que se formou autonomamente a partir do pensar de gerações anteriores, e que percorreu uma série de desenvolvimento própria, autónoma, no cérebro dessas gerações que se sucedem umas às outras. Sem dúvida que factos exteriores, que pertencem ao domínio próprio ou a outros [domínios], podem codeterminantemente ter influído sobre este desenvolvimento, mas esses factos são, segundo a pressuposição tácita, eles próprios, por sua vez, meros frutos de um processo de pensamento, e, assim, permanecemos ainda sempre na esfera do mero pensar, que aparentemente digeriu com felicidade mesmo os factos mais duros.
É esta ilusão [Schein] de uma história autónoma das constituições do Estado, dos sistemas do Direito, das representações ideológicas em cada domínio particular, que, antes de tudo, cega a maioria das pessoas. Se Lutero (4) e Calvino (5) «triunfam» [überwinden] da religião católica oficial, se Hegel [«triunfa»] de Fichte (6) e [de] Kant (7), se Rousseau com o seu Contrat Social (8) republicano [«triunfa»] indirectamente do Montesquieu constitucional (9), isso é um processo que permanece no interior da Teologia, da Filosofia, da Ciência do Estado, expõe uma etapa na história desses domínios de pensamento e não sai de todo fora do domínio do pensamento. E, desde que a ilusão [Illusion] burguesa acerca da eternidade e última-instancialidade [Letztinstanzlichkeit] da produção capitalista foi acrescentada, mesmo o triunfo [Überwingung] dos fisiocratas e de A. Smith (10) sobre os mercantilistas passa por uma mera vitória do pensamento; não pelo reflexo no pensamento [Gedankenreflex] de factos económicos modificados [que se modificam], mas pela penetração [Einsicht] correcta, finalmente alcançada, nas condições efectivas sempre e por toda a parte subsistentes; se Ricardo Coração de Leão (11) e Filipe Augusto (12) tivessem introduzido o comércio livre [Freihandel], em vez de se terem enredado em cruzadas, ter-se-nos-iam poupado quinhentos anos de miséria e de estupidez.
Este lado das coisas, que eu aqui apenas posso indicar, negligenciámo-lo nós, creio eu, mais do que ele merecia. É a velha história: no começo, a forma é sempre negligenciada relativamente ao conteúdo. Como disse, eu fi-lo igualmente, e o erro sempre só me apareceu post festum (13). Estou, portanto, não só muito longe de, de algum modo, lhe censurar isso – como co-culpado mais velho disso não tenho nenhum direito de o fazer, pelo contrário –, mas gostaria, contudo, de, para o futuro, lhe fazer notar este ponto.
Com isto se conecta também a representação disparatada dos ideólogos segundo a qual: porque denegamos às diversas esferas ideológicas que desempenham um papel na história um desenvolvimento histórico autónomo, lhes [denegamos] também toda a eficácia histórica [historische Wirksamkeit]. Está aqui subjacente a representação não-dialéctica ordinária de causa e efeito como pólos rigidamente contrapostos um ao outro, o absoluto esquecimento da acção recíproca [Wechselwirkung]. Os senhores esquecem, frequentemente, quase de propósito, que um momento histórico, logo que uma vez posto no mundo por outras causas, finalmente económicas, reage também sobre a sua envolvência [Umgebung] e pode, mesmo retroagir sobre as suas causas. Assim, por exemplo, Barth, acerca do sacerdócio e [da] religião, na p. 475 de V. Alegrou-me muito a maneira como V. se desembaraçou deste rapaz, contra todas as expectativas, pouco profundo. E fizeram do homem professor de História em Leipzig! Havia lá, no entanto, o velho Wachsmuth (14), que também era pouco profundo de crânio, mas tinha um sentido muito grande para os factos, um tipo inteiramente diferente!
[…]
Publicado, pela primeira vez, de forma abraviada no livro de Franz Mehring, Geschichte der Deutschen Sozialdemokratie, vol. III, t. II, Stuttgart 1898, e, na íntegra, em russo, nas Obras de Marx e de Engels, primeira edição, vol. XXIX, 1946.
Publicado segundo o texto do manuscrito. Traduzido do alemão.
Notas
(1) Cf. Franz Mehring. Die Lessing-Legende. Eine Rettung von Franz Mehring. Nebst einem Anhange über den historischen Matterialismus [A Lenda de Lessing. Um Salvamento, por Franz Mehring. Com Um Apêndice sobre o Materialismo Histórico], Stuttgart 1893.
Franz Mehring (1846-1919): personalidade do movimento operário alemão, historiador e publicista; tornou-se marxista nos anos 80 do século XIX; autor de várias obras sobre a história da Alemanha e da social-democracia alemã e de uma biografia de Marx; um dos chefes de redacção da Die Neue Zeit; um dos chefes e teóricos da ala esquerda do Partido Social-Democrata; desempenhou um papel activo na fundação do Partido Comunista da Alemanha.
(2) Em francês no texto: golpe de vista.
(3) Trata-se do livro de Paul Barth Die Geschichtsphilosophie Hegels und Hegelianer bis auf Marx und Hartmann (A Filosofia da História de Hegel e dos Hegelianos até Marx e Hartmann), publicado em Leipzig em 1890.
Paul Barth (1858-1922): filósofo e sociólogo alemão, professor da Universidade de Leipzig.
(4) Martinho Lutero (1438-1546): personagem da Reforma, fundador do protestantismo (luteranismo) na Alemanha; ideólogo dos burgueses alemães.
(5) João Calvino (1509-1564): um dos chefes da Reforma, fundador do calvinismo, ramo do protestantismo, que exprimia os interesses da burguesia no período da acumulação originária de capital.
(6) Johann Gottlieb Fichte (1762-1814): filósofo alemão clássico, idealista subjectivo.
(7) Immanuel Kant (1724-1804): fundador da filosofia clássica alemã, idealista.
(8) Cf. Jean-Jacques Rousseau, Du Contrat social ou principes du droit politique [Do Contrato Social ou Princípios do Direito Político], Amsterdam, 1762.
Jean-Jacques Rousseau (1712-1778): iluminista francês, democrata, ideólogo da pequena-burguesia.
(9) Isto é, defensor da monarquia constitucional.
Charles Montesquieu (1689-1755): sociólogo, economista e escritor do século XVIII, teórico da monarquia constitucional.
(10) Adam Smith (1723-1790): economista inglês, representante da economia política clássica.
(11) Ricardo I (1157-1199): rei de Inglaterra (1189-1199), cognominado Coração de Leão.
(12) Augusto (63 a. n. e.- 14): imperador romano (27 a. n. e.-14).
(13) Em latim no texto, literalmente: depois da festa, isto é, depois, posteriormente.
(14) Ernst Wilhelm Gottlieb Wachsmuth (1784-1866): historiador alemão, autor de várias obras sobre história antiga e europeia.
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Selecção:
- Francisco Melo
Tradução:
- José Barata Moura