«Dez contos de réis e de gente» de José Luís Ferreira
Este livro de José Luís Ferreira - Dez contos de réis de gente - trata da realidade pequena e grande, dos homens, das mulheres e das crianças, no meio rural e no meio urbano, na vida das aldeias, vilas e cidades.
É, portanto, um livro que nos identifica connosco e com os outros; e que nos engrandece, no humano mais humano da existência. Dá-nos linhas de crescimento e de como as coisas acontecem, nas figuras que se constroem e agem, sem aventuras fáceis, imaginadas por quem nunca viveu lá, no meio da pobreza e da ignorância, sem sucessos esplendorosos que só acontecem uma vez por outra, quando acontecem.
A sageza e a intuição que tratam da paixão de Abílio por uma rapariga mais avançada que ele; a importância do futebol na vida rural; o homem que não foi apurado para a tropa mas demonstra uma grande resistência e finura nas coisas do amor; os americanos que foram à lua e provocaram um nevoeiro que não deixava ver a televisão; o administrador do prédio urbano que é polícia e pouco sabe da vida; a história da morte da galinha ou da mulher; o gato Brigadeiro e os charutos cubanos; o Afonso que tinha os olhos bem abertos, mas a quem chamavam o Vesgo por não olhar direito para o regime; o irmão Gustavo que morreu na guerra colonial e o bufo que viu o filho ficar ferido na guerra; a festa de S. João que passou a realizar-se em Agosto e a chamar-se Festa dos Emigrantes; os casamentos enganados e a troca de mulheres e homens; o tio que morrera mas afinal estava vivo; o Calça Passada que se apaixonou por Madalena, e esta, que acabou o liceu e teve de emigrar, a casar com um grego na Bélgica; o Vítor, que lutou sempre pelos direitos dele e dos outros, numa volta de empregos, de despedimentos e de conhecimento de gentes e terras; o Serôdio, o camião e o Américo, mais o pai da Cidália, a quem chamavam o «último Trunfo» mas que teve de pagar o vitelo para o casamento da filha, eis alguns dos tópicos que aqui deixo, para que saibamos que não vamos ao engano, ao lermos este livro.
Há vida para lá do défice, como diria o outro. Nesta vida da escrita e dos livros, é necessário descortinar o que enriquece e o que nos esvazia, que é hoje, neste último caso, a grande maioria dos livros que são editados com pompa e circunstância. Estamos numa era de consumir e deitar fora, também na literatura, e, por isso, vale a pena avisar a navegação e dizer que este livro de dez contos de réis bem contados nos traz a identidade, a razão e o movimento das pessoas e das coisas, o sonho e a vontade de existir e de partilhar com os outros o passado, o presente e o futuro.
Hoje em dia, perante tanta mentira e jogadas rasteiras, cada vez mais rasteiras, de quem governa e quer fazer dos outros parvos, dando mensagens de espertos a jogar com o nosso destino como se fôssemos matraquilhos, aí temos neste livro um sinal, uma candeia acesa que seja, uma luz e mil luzes para conhecermos e rasgarmos melhor o futuro que ambicionamos e queremos.
Como disse no início, é de pequenos gestos, de uma sensibilidade apurada naquilo que o popular tem de melhor, em histórias contadas com um sentido muito próprio da capacidade de ter humor perante a dureza do dia-a-dia, que se constrói este livro, conto a conto, até se perfazerem «dez contos de réis e de gente» que merecem outros contos e novas vidas a ser contadas como quem não quer a coisa, numa escrita que sempre vai trazendo histórias capazes de nos envolverem e desenvolverem, no que de melhor têm os seres humanos que todos nós somos.
Opção de classe feita, um olhar de paixão e amor, mas também crítico, para quem é cá de baixo, do trabalho, e que, por isso mesmo, tem de ser exigente e capaz de lutar pelos desígnios e sonhos; um olhar acerado e acusador para quem trai, para quem explora e nada traz de novo ao mundo. Eis um pouco deste livro, o pouco e o muito que José Luís Ferreira nos entrega como quem diz aqui está, o meu e o teu mundo, e agora governa-te como entenderes; mas ao menos lê o que vale a pena ler, digo eu agora, e não te deixes embalar por quem não gosta de literatura e de cultura e nos deixa mais pobres no fim da leitura do que escreve e conta.
Temos de estar de olhos abertos para a vida, e vale mais usar a vista e a inteligência que temos do que comprar uns óculos de feira das vaidades e depois cumprimentar qualquer locutor de televisão que nos dá as boas-noites, como faz, neste livro, uma personagem que não aviou os óculos que o médico lhe receitou e que, por isso, se enganava lá no café, devolvendo as boas-noites a quem estava no ecrã do televisor.
Vão ler, vão ler calmamente este livro, que faz bem ao corpo e à alma e nos faz sorrir e rir à gargalhada, no divertimento que também é, no gosto de contar que nos acompanha.
Não darão o tempo e o dinheiro como perdidos; bem pelo contrário, se forem bons leitores e não quiserem alienar-se com as bugigangas do mercado, hão-de caminhar sozinhos na noite e no dia de leitura e hão-de perceber que estão a ficar rodeados de gente e de contos de réis enriquecedores, que dão gosto de viver, de voltar a ler e de esperar por novo livro de quem é capaz de nos surpreender e ligar à corrente da existência dos outros e do gosto de estar vivo.