Transportes

Da liberalização apregoada à concentração monopolista em curso

Manuel Gouveia

Nos Trans­portes está em curso, no plano na­ci­onal e no eu­ropeu, um pro­cesso apre­sen­tado como de li­be­ra­li­zação, mas que nos seus efeitos e ob­jec­tivos reais pro­move a con­cen­tração mo­no­po­lista. Um pro­cesso que, em nome da con­cor­rência des­trói o mo­no­pólio pú­blico para cons­truir o mo­no­pólio pri­vado, e si­mul­ta­ne­a­mente, des­trói a pro­pri­e­dade pú­blica para eli­minar a pro­pri­e­dade na­ci­onal.

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Este pro­cesso é co­man­dado por uma União Eu­ro­peia su­bor­di­nada às grandes mul­ti­na­ci­o­nais e aos in­te­resses im­pe­ri­a­listas da Ale­manha e da França, e re­pre­senta mais uma pro­funda ma­chada na nossa so­be­rania na­ci­onal. O pro­grama im­posto pela troika es­tran­geira e que a troika por­tu­guesa quer im­ple­mentar re­pre­sen­taria mais um passo de gi­gante neste pro­cesso de de­sas­trosas con­sequên­cias para Por­tugal.

Ana­li­semos o que acon­teceu com a pri­va­ti­zação das ro­do­viá­rias de pas­sa­geiros, que foram o pri­meiro sub­sector a ser li­be­ra­li­zado em Por­tugal. No Sector Pú­blico fi­caram apenas a Carris e os STCP e uns poucos ser­viços mu­ni­ci­pa­li­zados. A si­tu­ação real, des­crita na caixa anexa, é que por de­trás de uma mul­tidão de si­glas existe uma in­tensa con­cen­tração em três grupos: a Transdev (mul­ti­na­ci­onal fran­cesa); a Ar­riva (in­glesa já com­prada pela mul­ti­na­ci­onal alemã DB); e a Bar­ra­queiro. A pre­sença de ca­pital da Ar­riva na Bar­ra­queiro (31,5%) in­dicia que se ca­minha já para a sim­ples exis­tência de dois grupos, um li­gado ao ca­pital francês e outro li­gado ao ca­pital alemão.

Estes grupos co­me­çaram agora a passar das Ro­do­viá­rias de Pas­sa­geiros para o Sector Fer­ro­viário Ur­bano: Metro Sul do Tejo (Bar­ra­queiro); Metro do Porto (foi Transdev, agora é Bar­ra­queiro); Fer­tágus (Bar­ra­queiro com a Transdev a lutar pela con­cessão).

Com o grosso dos in­ves­ti­mentos a ser sempre su­por­tados pelo Es­tado, desde as in­fra­es­tru­turas à frota re­no­vada por ra­zões am­bi­en­tais, com enormes perdas para os utentes e para o País, a des­truição da Ro­do­viária Na­ci­onal tra­duziu-se na con­cen­tração mo­no­po­lista des­crita. Um pro­cesso que é mais vasto e do qual dei­xamos al­gumas ou­tras pistas: a cri­ação da Ta­kargo pela Mota-Engil; a cri­ação do Acordo Com­ple­mentar de Em­presas entre a EMEF e a Si­e­mens; as de­cla­ra­ções pú­blicas da Mota-Engil de pre­tender con­correr à ma­nu­tenção fer­ro­viária ur­bana; o ca­pital da MTS, que gere o Metro Sul do Tejo, com­posto pela Bar­ra­queiro, Si­e­mens, Mota-Engil e Tei­xeira Du­arte; a cres­cente li­gação da Ma­nu­tenção do Metro de Lisboa à Si­e­mens.

 

Con­cen­tração mo­no­po­lista à es­cala eu­ro­peia e mun­dial

 

No plano eu­ropeu, a con­cen­tração es­tende-se a todo o sector. As­sume uma tal di­mensão que hoje os dois mai­ores grupos mun­diais de trans­portes e lo­gís­tica são ale­mães (a DB de origem fer­ro­viária, 330 mil tra­ba­lha­dores, e a DP/​DHL com origem nos ser­viços pos­tais, 500 mil tra­ba­lha­dores), quando há 10 anos esse do­mínio era norte-ame­ri­cano. A re­cente fusão da Ve­olia com a Transdev, cri­ando um grupo com 119 mil tra­ba­lha­dores, é a ex­pressão fran­cesa deste pro­cesso.

Também no sector Aéreo se afir­maram três grupos, sendo igual­mente o papel do­mi­nante da Ale­manha e de­pois da França. São estes grupos a Lufthansa (112 mil tra­ba­lha­dores, e re­sul­tados ope­ra­ci­o­nais de 36 067 mi­lhões de dó­lares, o maior do mundo); a Air France/​KLM (105 mil tra­ba­lha­dores, e re­sul­tados ope­ra­ci­o­nais de 31 276 mi­lhões de dó­lares, o quarto maior do mundo), e ainda a re­cente AIG (Bri­tish/​Ibéria, com «apenas» 19 533 mi­lhões de dó­lares de re­sul­tados ope­ra­ci­o­nais). Para termos uma ideia de es­cala, as res­tantes sete com­pa­nhias aé­reas do top 10 eu­ropeu (Tur­kish Air­lines, Air Berlin, Rya­nair, EasyJet, Ae­ro­flot, Ali­talia) as­sumem um valor total de 34 431 mi­lhões de dó­lares de re­sul­tados ope­ra­ci­o­nais, um valor já in­fe­rior ao da Lufthansa.

Este pro­cesso de con­cen­tração ainda não ter­minou e conta com as di­nâ­micas pró­prias do ca­pi­ta­lismo, mas foi e con­tinua a ser se­ve­ra­mente im­pul­si­o­nado pela União Eu­ro­peia, pri­meiro proi­bindo o apoio dos es­tados às suas com­pa­nhias aé­reas, de­pois eli­mi­nando pro­gres­si­va­mente todos os me­ca­nismos que pro­te­giam no plano con­cor­ren­cial as com­pa­nhias na­ci­o­nais (de que a li­be­ra­li­zação das rotas é o exemplo mais re­cente), e agora im­pondo di­rec­ta­mente a li­qui­dação das res­tantes.

Na pro­dução de aviões de pas­sa­geiros, outra ver­tente es­tra­té­gica e que não pode ser des­li­gada do acima dito, re­pete-se o quadro de con­cen­tração, com a Airbus a as­sumir um ca­rácter do­mi­nante na Eu­ropa em com­pe­tição mun­dial com a Bo­eing (EUA) e com um ca­pital so­cial «equi­ta­ti­va­mente» dis­tri­buído: França (Ae­ros­pa­tiale) e Ale­manha (Deustche Airbus) com 37,9% cada, In­gla­terra (Bri­tish Ae­ros­pace) com 20% e Es­panha (CASA) com 4,2%

No quadro da con­cor­rência inter-im­pe­ri­a­lista, prin­ci­pal­mente a Ale­manha, mas também a França, sal­va­guar­daram e re­for­çaram as suas po­si­ções, em pri­meiro lugar à custa da con­cen­tração mo­no­po­lista na Eu­ropa, da ca­ni­ba­li­zação das em­presas e mer­cados dos es­tados-mem­bros da União Eu­ro­peia. Num quadro em que as grandes em­presas de trans­portes alemãs e fran­cesas são pú­blicas ou for­te­mente con­tro­ladas pelos es­tados, as­su­mindo um papel do­mi­nante num sector es­tra­té­gico ao ser­viço do grande ca­pital dos res­pec­tivos países. As po­lí­ticas eu­ro­peias, e os «go­ver­na­dores-ge­rais» ro­ta­ti­va­mente ins­ta­lados nos go­vernos dos es­tados-mem­bros, têm-se li­mi­tado ao papel de pre­parar este pro­cesso.

 

O plano das troikas ao ser­viço desta con­cen­tração mo­no­po­lista

 

Ao longo deste pro­cesso, os ob­jec­tivos do grande ca­pital eu­ropeu têm sido li­ne­ares: o de­sen­vol­vi­mento e con­trolo de sec­tores es­tra­té­gico para as eco­no­mias cen­trais (por exemplo, o trans­porte fer­ro­viário de mer­ca­do­rias e o trans­porte e con­trolo aéreo); a co­lo­ni­zação dos mer­cados de ser­viços as­so­ci­ados ao trans­porte; a mo­no­po­li­zação da con­cepção e pro­dução de equi­pa­mentos de alto valor acres­cen­tado; a in­ten­si­fi­cação da ex­plo­ração da força de tra­balho no sector à es­cala eu­ro­peia.

O pa­cote de ofertas man­co­mu­nado entre as troikas em tudo con­verge com esta es­tra­tégia: pri­va­ti­zação da TAP com a sua as­si­mi­lação; pri­va­ti­zação da ANA re­mo­vendo o úl­timo obs­tá­culo ao do­mínio es­tran­geiro no sector; pri­va­ti­zação da CP Carga, para ser as­si­mi­lada pela mul­ti­na­ci­onal alemã que já detém mais de 60% do sector na Eu­ropa; en­trega às mul­ti­na­ci­o­nais da gestão dos sec­tores de ser­viços po­ten­ci­al­mente ge­ra­dores de rendas (Metro, Carris, CP Lisboa, CP Porto); pri­va­ti­zação da EMEF, o que com­pleta o ciclo de apro­pri­ação pelas mul­ti­na­ci­o­nais da cons­trução e ma­nu­tenção fer­ro­viária na­ci­onal.

É mais um passo num pro­cesso de co­lo­ni­zação, onde o grande ca­pital eu­ropeu impõe uma po­lí­tica ao ser­viço dos seus in­te­resses im­pe­ri­a­listas, con­tando com um Es­tado por­tu­guês (porque do­mi­nado pela grande bur­guesia na­ci­onal) sem qual­quer pro­jecto na­ci­onal e muito menos pa­trió­tico.

 

Con­sequên­cias para Por­tugal

 

Este pro­cesso já está a ter pe­sadas con­sequên­cias para Por­tugal, que se agra­va­riam bru­tal­mente se o «pacto» de agressão fosse apli­cado. Por exemplo, no que res­peita ao dé­fice ex­terno, re­duzir-se-iam as ex­por­ta­ções (só o sector aéreo é hoje di­rec­ta­mente res­pon­sável por dois mil mi­lhões de euros de vendas ao/​no es­tran­geiro), au­men­ta­riam as ex­por­ta­ções de lu­cros e mais-va­lias (já hoje uma re­a­li­dade pe­sada fruto das an­te­ri­ores pri­va­ti­za­ções) e tornar-se-ia ab­so­luta a de­pen­dência ex­terna da im­por­ta­ções de equi­pa­mento. E no que res­peita ao de­sen­vol­vi­mento da eco­nomia na­ci­onal, não é di­fícil per­ceber as con­sequên­cias de um sector do tu­rismo de­pen­dente da oferta mo­no­po­lista das mul­ti­na­ci­o­nais e so­frendo a sua per­ma­nente chan­tagem, do agra­va­mento da de­ser­ti­fi­cação do in­te­rior, de uma rede fer­ro­viária ge­rida para servir a eco­nomia alemã e não para re­duzir os custos de pro­dução e cir­cu­lação em Por­tugal e a fac­tura ener­gé­tica do País. Mesmo para o dé­fice das contas pú­blicas e para o fu­turo da Se­gu­rança So­cial, as con­sequên­cias se­riam dra­má­ticas; lem­bramos que só a TAP mete mais de 100 mi­lhões de euros por ano na Se­gu­rança So­cial e 60 mi­lhões de IRS, sem es­quecer o im­pacto de con­ti­nuar a pagar os juros da dí­vida criada às em­presas pú­blicas nos úl­timos 20 anos mas com os re­sul­tados fi­nan­ceiros da ex­plo­ração dos in­ves­ti­mentos a ser em­bol­sados pelas mul­ti­na­ci­o­nais.

 

E al­ter­na­tiva, existe?

 

Face ao pro­cesso em curso, di­ri­gido pelo im­pe­ri­a­lismo eu­ropeu, su­por­tado na UE, no BCE e no FMI, com di­ri­gentes na­ci­o­nais in­ver­te­brados ajo­e­lhados ao poder dos mo­no­pó­lios e uma si­tu­ação eco­nó­mica e fi­nan­ceira de­sas­trosa fruto de 35 anos de contra-re­vo­lução, al­guns po­derão ter a ten­dência de se as­sustar, de não ver a al­ter­na­tiva. Mas ela existe.

Con­ti­nuar a re­sistir a este pro­cesso é a al­ter­na­tiva ime­diata. Porque o pro­grama das troikas não re­solve ne­nhum pro­blema na­ci­onal, antes os agrava a todos. Porque a grave si­tu­ação na­ci­onal é também con­sequência deste pro­cesso de in­te­gração eu­ro­peia ca­pi­ta­lista, si­tu­ação que par­ti­lhamos com muitos ou­tros povos, cuja luta na­ci­onal con­verge para a li­ber­tação de todos. Porque é pos­sível im­pedir a con­cre­ti­zação destes planos: já no pas­sado os tra­ba­lha­dores der­ro­taram planos de pri­va­ti­zação então apre­sen­tados como ine­vi­tá­veis; lem­bremo-nos da frase «A TAP acaba se não for ven­dida à Swis­sair!» dita há tantos anos que ainda existia a Swis­sair!

Na luta, com os tra­ba­lha­dores e o povo, sal­va­remos da pre­dação im­pe­ri­a­lista tudo o que for pos­sível – em­presas, sa­beres, di­reitos, equi­pa­mentos, so­be­rania, pe­daços do nosso pre­sente e ala­vancas do nosso fu­turo. Mas prin­ci­pal­mente, na luta, na cres­cente mo­bi­li­zação e or­ga­ni­zação de todas as ca­madas ob­jec­ti­va­mente an­ti­mo­no­po­listas, fa­remos cum­prir as pa­la­vras de Ary, fa­zendo re­gressar ao povo, «à bar­riga da mãe», o poder que a grande bur­guesia re­con­quistou, rei­ni­ci­ando o ca­minho de de­sen­vol­vi­mento so­be­rano e in­de­pen­dente do nosso País, em co­o­pe­ração com todos os povos do mundo, li­bertos do poder dos mo­no­pó­lios.


Con­cen­tração no Sector Ro­do­viário

Bar­ra­queiro – Já com 4900 tra­ba­lha­dores, e in­te­grando em­presas como a Ro­do­viária de Lisboa; Ro­do­viária do Tejo; Bar­ra­queiro Trans­portes; Frota Azul; EVA Trans­portes; Ro­do­viária do Alen­tejo, e Rede de Ex­pressos;

Transdev – Ope­rando um total de 1500 au­to­carros em Por­tugal, in­tegra em­presas como: a Al­pen­du­rada; An­tónio Cruz e João Dias Neves Lda; As­douro – Trans­portes Ro­do­viá­rios do Douro; Auto Mon­di­nense SA; Auto Vi­ação Avei­rense S.A.; Auto Vi­ação Al­meida e Fi­lhos S.A.; Caima S.A; Cal­çada Lda; Char­line Lda; Mi­nhos Bus Lda; Em­presa Au­to­mo­bo­lis­tica de Vi­ação e Tu­rismo; Em­presa de Vi­ação Beira Douro Lda.; Em­presa de Trans­portes An­tónio Cunha S.A.; Hol­ding Jo­alto Transdev SGPS; In­ter­centro – Trans­portes In­ter­na­ci­o­nais Ro­do­viá­rios do Centro Lda; In­ter­ga­liza – Par­ti­ci­pa­ções e Trans­portes Lda.; In­ter­norte Trans­portes In­ter­na­ci­o­nais Ro­do­viá­rios do Norte Lda.; In­tersul – Trans­portes In­ter­na­ci­o­nais Ro­do­viá­rios do Sul Lda.; Jo­al­gest; Jo­alto Part­ci­pa­ções SGPS; Jo­alto Ro­do­viária das Beiras S.A.; Jo­a­quim Guedes, Filho e Genros Lda.; José Ro­dri­gues Fontes e Lou­renço Silva Granja Lda.; Ro­do­viária d'entre Douro e Minho S.A.; S2M S.A.; So­ares Oli­veira S.A.; So­ci­e­dade de Trans­portes do Ca­ra­mulo Lda.; Trans­co­vilhã – Em­presa de Trans­portes Ur­banos da Co­vilhã Lda.; Trans­co­vi­zela, Trans­portes Pú­blicos S.A.; Transdev Mo­bi­li­dade S.A. Por­tugal; Transdev Par­ti­ci­pa­ções S.G.P.S; Transdev Por­tugal; Trans­portes Lda; Trans­portes Ro­do­viá­rios Por­tu­gueses do Norte Lda; Uni­dade Me­câ­nica Jo­alto Lda; Viúva Car­neiro e Fi­lhos Lda.


Ar­rivaOpe­rando 1550 au­to­carros com 3100 tra­ba­lha­dores, in­cluiu es­sen­ci­al­mente a TST (Se­túbal) e a Ar­riva (Norte).



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A tempestade perfeita

Como é do co­nhe­ci­mento geral o Go­verno au­mentou, em média, o custo dos trans­portes pú­blicos em cerca de 15% a que se se­guiu a al­te­ração do IVA apli­cado à elec­tri­ci­dade e ao gás, pas­sando-o da taxa de 6% para a de 23%.

A pre­texto de au­mentar a com­pe­ti­ti­vi­dade da nossa eco­nomia o mesmo Go­verno pre­tende di­mi­nuir o valor pago pelo pa­tro­nato à Se­gu­rança So­cial, o que sig­ni­fica uma coisa e o seu con­trário, ou seja:

- di­minui o poder de compra da ge­ne­ra­li­dade da po­pu­lação.

- au­menta o lucro do factor ca­pital, de­sig­na­da­mente dos grandes grupos li­gados às grandes su­per­fí­cies, às co­mu­ni­ca­ções, à energia e a sec­tores onde pon­ti­ficam a Mota Engil, a Au­to­eu­ropa, bem como ou­tras im­por­tantes e in­flu­entes em­presas es­tran­geiras, sem es­quecer aquelas que, no sector em­pre­sa­rial do Es­tado, estão em vias de pri­va­ti­zação como sejam os casos da TAP, CTT, etc.