As difíceis opções do «carola»

A. Mello de Carvalho

Nenhuma lei reconhece, no nosso País, em termos minimamente aceitáveis, a acção e a função do dirigente voluntário. A Lei sobre o Associativismo, fazendo uma referência implícita a quem lhe dá vida, não o refere em termos objectivos. Tudo isto é estranho quando nos damos conta das muitas dezenas de milhares de indivíduos, de idades variadas e dos dois sexos [100 000? 150 000?] que desempenham aquela função [muito menos do sexo feminino do que do masculino, como é normal].

Nem a sua actividade é reconhecida, nem as condições indispensáveis ao exercício das suas funções são, sequer afloradas. A verdade é que, se durante muitas décadas foram eles que sustentaram a actividade dos clubes (pequenos, grandes ou médios), as condições concretas vividas pela crise do associativismo impõem a clarificação de uma situação que se caracteriza pelos seus contornos pouco claros e é objecto de uma constante controvérsia em que, nem sempre, os próprios dirigentes se posicionam da forma mais adequada.

A própria crise social que se vive na actualidade, segregou, na nossa sociedade, uma ideologia própria para avaliar os dirigentes associativos. Essa ideologia é, de facto, composta por um conjunto de interrogações que exigem resposta: dúvidas sobre a capacidade técnica do «carola», ou seja do tal dirigente associativo voluntário, que se deveria profissionalizar para garantir a gestão correcta do seu clube. Afinal uma dúvida demagógica e com segundo sentido, se verificarmos que a profissionalização de um indivíduo (por ex. um autarca) não constitui, só por si mesma, qualquer garantia de aquisição de uma competência. Aliás, já se encontram profissionalizados (ou «semi-profissionalizados») inúmeros dirigentes associativos (por ex. nos clubes do futebol espectáculo) sem que essa competência surja com a indispensável clareza.

Mas outras dúvidas se colocam, de uma outra natureza: antes de tudo a dúvida sobre a vontade do Estado em promover o reconhecimento da sua função social. Em segundo lugar, dúvida quanto à intenção deste em fornecer os meios indispensáveis para o desempenho de uma missão [que só pode ser entendida quando analisada no quadro do «serviço de interesse geral» e do «serviço público»]. Em terceiro lugar, dúvida quanto à sua capacidade em entender o próprio desenvolvimento do desporto por se opor à «mudança» e se agarrar a uma visão passadista da sua acção.

A situação do «carola» assume, assim, um carácter contraditório: por um lado, continua a desempenhar uma tarefa essencial para a vida da comunidade, pois e é ele que tem garantido o funcionamento de estruturas (o clube) que desempenham um papel essencial. E, pelos vistos, têm-no realizado com alguma competência, visto continuar a considerar-se que o desporto que temos surge e sustenta-se, precisamente, através da acção que desenvolvem nos clubes. Mas, por outro lado, as dúvidas sobre o seu estatuto avolumam-se ao ponto de o considerar como algo de ultrapassado, uma espécie de «dinossauro» da vida associativa passada. Alguns chegam mesmo a olhar com desconfiança um indivíduo que contraria, de facto, o comportamento dominante e que por todos os meios é valorizado (competitividade sem regras, obtenção do lucro sem olhar a meios, individualismo feroz, oportunismo voraz, etc.).

A verdade é que se sobre ele se fazem sentir os efeitos da crise, e os que resultam daquelas «desconfianças», mas ao mesmo tempo é ele que continua a estar mais perto e junto do pulsar vivo da comunidade. É ele que encontra força anímica, entusiasmo e vontade para elaborar resposta a vários problemas que, de outra forma, ficariam sem resposta. O «carola» é, por isso, um elemento chave da vida comunitária, exprimindo, de uma forma particularmente aguda, as aspirações de acesso a uma vida melhor, sem procura de ganhos financeiros. Em termos gerais, quando o dirigente benévolo alia à sua qualidade de actor social o sentimento de militância, traduz uma condição essencial para a estruturação de uma sociedade solidária. No fundo, é ele, de facto, que constitui uma «reserva moral» dentro da comunidade, que desmente, na prática quotidiana, os arautos do fim das solidariedades, da acção desinteressada e dos projectos de entrega à coisa pública.

Em plena crise do chamado Mundo Ocidental, neste início de século em que emergem fenómenos inquietantes que rasgam o tecido social, a vida associativa adquire um significado novo e talvez mais profundo do que no passado. Ao contrário daquilo que alguns desejam e muitos crêem, o associativismo não dá indícios de que irá desaparecer. Mas, se tal se vier a dar, como vontade expressa em liquidar as formas mais vivas de participação e intervenção social, será toda a comunidade humana que sofrerá uma enorme perda, na medida em que ele é um dos mais sólidos esteios em que repousa a construção dos laços sociais comunitários.



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