Início de uma nova época de resistência e luta
1941: Hitler invade a URSS onde, nas tropas invasoras, um dos comandantes nazis declara que, por cada alemão morto, serão executados 50 a 100 comunistas.
Nesse ano morrem mais seis presos políticos no Campo de Concentração do Tarrafal e, por sentença do Tribunal Militar Especial, são condenados 14 grevistas acusados do «crime de sublevação».
1941: Ano negro, mas, também, ano de esperança e de luta.
É nesse ano que Soeiro Pereira Gomes publica Esteiros, cuja capa foi desenhada por Álvaro Cunhal; ano que corresponde à fase da reorganização do PCP e que marca, segundo o informe daquele nosso camarada ao III Congresso do PCP, (I Congresso na ilegalidade), «o início duma nova época no movimento operário português, a alvorada dum novo ascenso revolucionário do proletariado, o começo duma nova etapa na luta contra o fascismo. A classe operária tomou finalmente consciência da própria força».
Nesse informe é também relatada a importância da greve de 5 de Novembro de 1941 levada a cabo pelos operários da Covilhã cujo exemplo estimulou, sob a orientação do PCP, as portentosas greves realizadas no Outono do ano seguinte.
A greve de 1941 constitui um marco na luta operária, num contexto em que a estrutura sindical portuguesa estava domesticada pelo corporativismo, ou seja, pela conciliação de classes, vertida no Estatuto do Trabalho Nacional, elemento doutrinário copiado por Salazar da Carta del Lavoro da autoria de Mussolini.
A greve de 1941 merece, pois, na actual regressão social, ser recordada, não apenas na sua vertente política e sindical, mas também na vertente literária na medida em que serviu de inspiração a Ferreira de Castro escrever esse belo livro que dá pelo nome de A Lã e a Neve.
Na comemoração dos 70 anos da greve da Covilhã falemos da greve e, igualmente, do livro nela inspirada, fazendo votos para que os nossos intelectuais, artistas e criadores, na observância da sua inquestionável liberdade de expressão e criação, não deixem, nestes dias sombrios, de se aproximarem dos problemas do povo, designadamente dos mais desfavorecidos, como nos anos da fome fez Ferreira de Castro no seu livro A Lã e a Neve.
Não se pede um panfleto.
Não se exige uma obra prima.
Cada um faça o que tiver de fazer mas não deixem de aproveitar, como fonte de inspiração, o nosso povo e os seus problemas.
A Lã e a Neve
Falemos da produção literária de Ferreira de Castro sobre os acontecimentos sociais que deram origem à A Lã e a Neve, cujo enredo, segundo Mário Dionísio «é o romance dos tecidos e daqueles que os fabricam, a história da lã desde a criação da ovelha à exportação do tecido e a história do nascimento à morte, daqueles que o fabricam e não têm cobertores para a cama no impiedoso inverno da serra».
A figura central do livro, mas não o seu herói, é um jovem, de nome Horácio.
Estamos no início da II guerra mundial.
Horácio, logo que desmobilizado do serviço militar, dirige-se à sua terra natal, nas faldas da Serra da Estrela, onde o espera a sua jovem namorada e o retorno à sua anterior ocupação laboral, o pastoreio de ovelhas e a respectiva ordenha. No regresso ao ambiente familiar leva consigo dois objectivos: o casamento e a construção de uma casa própria, com dois quartos, uma cozinha e uma latrina (o conceito de casa-de-banho não existia nas classes mais desfavorecidas).
Este último objectivo foi cimentado no decurso da sua vida militar, passada algures num forte de artilharia anti-aérea na região do Estoril, na altura o centro cosmopolita onde afluíam a coqueluche da alta burguesia, associada à alta nobreza arredada do poder.
O nosso jovem, nos tempos livres, passeando-se entre Cascais e o Estoril, longe de qualquer ideia progressista que explicasse a simultaneidade da riqueza e da pobreza, contrastava, apenas, as casas apalaçadas e as vivendas rodeadas de cuidados jardins e os casebres e os tugúrios onde vivia a maior parte da população da sua região, quer serrana, quer urbana.
Para alcançar o objectivo da construção da modesta moradia, associado ao casamento com a Idalina, eram necessários meios financeiros que a vida de pastoreio não permitia.
De resto, o pastoreio também não permitia uma vida familiar regular, sustentada no convívio diário com o cônjuge e com os filhos que, oportunamente, iriam surgir.
Ponderadas estas questões, Horácio pensou que, alcançado um outro emprego e um outro salário, podia, por essa via, sozinho, pelo seu esforço individual, subindo a corda a pulso, atingir os seus objectivos. Para o efeito, utilizando um relacionamento pessoal, consegue ascender ao operariado, começando por ser aprendiz numa fábrica de lanifícios na cidade da Covilhã.
Porém, cedo percebeu que o salário de aprendiz, deduzida a alimentação e o pagamento do aluguer de um modesto quarto, na modesta casa do operário Ricardo, não permitia a poupança necessária para suportar o casamento e, muito menos, para construir a tão desejada casa.
É neste contexto de receitas e despesas, à margem da noção de exploração, que decide investir no aperfeiçoamento dos conhecimentos laborais sujeitando-se, para além do período normal de trabalho, a adquirir o estatuto de tecelão, função correspondente à de um operário especializado.
A técnica ligada ao exercício de tecelão foi-lhe ensinada por um velho e experimentado operário, de nome Marreta, um homem que nas greves anteriores à instauração do fascismo havia sido preso.
Marreta era um homem bom, compreensivo, solidário e que acreditava num mundo melhor, embora não tipificasse claramente os contornos políticos e sociais dessa futura sociedade.
Marreta, praticante do esperanto, língua criada para servir com língua universal, era um fraterno camarada, em redor do qual conviviam outros operários, parte dos quais, face aos baixos salários e às miseráveis condições de vida, integraram uma comissão do pessoal das fábricas com o objectivo de reclamarem dos patrões um aumento dos vencimentos.
Ao pedido de aumento salarial seguem-se as prisões de Ricardo, do Cristino, do Gabriel Alcafoses e de outros operários, prisões que, contudo, não destruíram o comité de greve, o qual, face à reacção da polícia, decidiu marcar, de imediato, a greve do operariado da Covilhã.
Horácio, com as suas raízes camponesas, influenciado pela vida solitária durante muitos anos na serra tendo apenas como companhia o rebanho de ovelhas e o seu cão favorito, o «Piloto», Horácio, dizíamos, sentia-se meio confuso, receoso de ser despedido, de perder o lugar de tecelão, de eventualmente ser preso, mas, no contexto da preparação da greve, ao ouvir a voz calma e constatar a firmeza de Marreta no diálogo travado com outros camaradas, designadamente com o Tramagal e com João Ribeiro, os seus iniciais receios desapareceram.
Iniciada a greve, redobram-se as prisões.
Marreta e mais cerca de duas dezenas de homens, mulheres e adolescentes são presos. Entretanto uma multidão de mulheres dirige-se à esquadra da policia e em uníssono reclamam: « Queremos os presos! Queremos pão para os nossos filhos!»
Um segundo comité da greve foi igualmente preso.
Entretanto, pouco tempo depois, os grevistas rejubilaram de alegria quando Belchior informou que, na Covilhã, havia sido colocado no terreno, em termos operacionais, um terceiro comité de greve. Mas os meios repressivos, o exército, a GNR, a PSP, a polícia política, eram, como não podia deixar de ser, bastante vultuosos e a capacidade de resistência de um povo desprovido de comida e agasalhos não podia deixar de pesar na decisão a tomar: o regresso ao trabalho.
Entretanto passaram os tempos.
Muitas pessoas, nem todas, iam à medida em que a guerra ia evoluindo tomando consciência de que o nazismo tinha os dias contados, não apenas pelo desembarque dos aliados na Sicília e na Normandia, mas, sobretudo, pelas vitórias do Exército Vermelho e do seu avanço rumo a Berlim. Havia no ar a sensação que destruído o fascismo na Itália e o nazismo na Alemanha que, em Portugal, Salazar acabaria abandonado pela Inglaterra e pelos EUA.
Puro engano!
É neste ambiente que, após o casamento com Idalina, nasce o filho de Horácio e que o desejo deste em conseguir a tão desejada casa com dois quartos, cozinha e latrina anexa não passa de um mero sonho, sujeitando-se, como os restantes trabalhadores, a viver num acanhado tugúrio citadino sem electricidade, água canalizada, esgotos, tudo isto limitado por um espaço restrito, sem privacidade e sem condições para fazer face aos rigorosos invernos da região.
Entretanto Marreta, que tempos antes havia saído da prisão, faz 65 anos de idade, facto que serviu de pretexto ao patrão para o despedir como mero trapo velho, sobrevivendo de inicio com uma mesada de vinte escuros e, posteriormente, por falta de recursos, colocado no Albergue, onde pouco tempo depois falece.
No dia do enterro muitos dos antigos grevistas encontram-se, designadamente o Tramagal, o João Ribeiro e o Ricardo, tendo este referido a Horácio: «No sábado, à noite, vamos fazer uma reunião, aqui, na Covilhã, em casa do Ildefonso. Precisamos de continuar... Compreendes?
Precisamos de continuar... Não faltes!
«Lá irei – respondeu. E voltou a sentir-se menos abandonado do que quando vira, momentos antes, enterrar Marreta e muito menos do que quando, há anos, entrara para a fábrica. Parecia-lhe que uma secreta força, que ele desconhecia quando viera para ali, partia dos outros para ele e dele para os outros – ligando-os a todos e dando-lhes, com novas energias, uma nova esperança.»
Eis, na versão romanceada de Ferreira de Castro, a versão lírica de Vinicius de Morais: «Um operário em construção».
Horácio não é, porém, o herói de A Lã e a Neve.
Ele é, apenas, a figura que Ferreira de Castro encontra para contextualizar o ambiente operário da indústria têxtil da Covilhã, cujos trabalhadores, vítimas da maior exploração, habitando em velhos casebres, estão sujeitos ao rigor do frio, à fome e à falta de apoios na infância, na doença e na velhice.
Na nossa perspectiva de leitor, provavelmente não coincidente com a opinião de leitores mais entendidos, o herói de A Lã e a Neve é o colectivo, é o Marreta, é o Ricardo, é o Tramagal, é o Cristino, é o Gabriel Alcafoses, é o João Ribeiro, é o Ildefonso, entre outros, é a classe operária que nas duras condições do fascismo, parafraseando Álvaro Cunhal, «tomou finalmente consciência da própria força».
A greve de 1941 e o jornal Avante!
No Avante! da VI Série, nº.4, de Novembro de 1941, há um relato circunstanciado deste importante acontecimento. Na impossibilidade de reproduzirmos o texto integral por falta de espaço, vale a pena referir os aspectos que melhor caracterizam o acontecimento. O texto do Avante! é encimado com o seguinte título:
Greves e manifestações na Covilhã
O povo trabalhador luta pelo Pão e pela Liberdade
«O governo fascista, continuando a série de crimes contra os trabalhadores, afogou em repressão e sangue um legítimo pedido dos operários da Covilhã.
À reclamação de melhores salários respondeu-se com evasivas, depois com prisões, finalmente com metralhadoras. Mas apesar disto, o governo não conseguiu sair totalmente vitorioso da luta.
Porque os trabalhadores da Covilhã sabem agora quanto vale a sua união. Sabem que as necessidades que os seus inimigos tiveram de empregar uma violência feroz, mostra bem que eles não contam com nenhum apoio das massas, que eles não são já senhores de resolver as dificuldades da vida nacional, mostra, não a força, mas a debilidade dos inimigos da classe operária. Os operários da Covilhã colheram ensinamentos nesta luta e saberão aproveitá-los.
OS OPERÁRIOS DA COVILHÃ LUTARÃO ATÉ OS SALARIOS LHES SEREM AUMENTADOS, ATÉ OS SEUS CAMARADAS PRESOS SEREM LIBERTADOS!
Era incomportável para os patrões o pedido de aumento de salários?
Sem dúvida que não. As fábricas de lanifícios não têm descanso. Possuem grandes encomendas para a Suíça, Exército Português, etc.
SE OS INDUSTRIAIS DA COVILHÃ TINHAM JÁ GRANDES LUCROS ANTES DA GUERRA, AGORA ELES TORNAM-SE FABULOSOS.
Em contraste, a vida dos trabalhadores tem vindo a agravar-se dia a dia.
TUDO AUMENTA DE PREÇO, FALTAM OS GÉNEROS DE PRIMEIRA NECESSIDADE, MAS OS SALÁRIOS PERMANECEM OS MESMOS.
No concelho da Covilhã há terras onde só há pão em dias alternados».
Depois de um relato mais circunstanciado, quer sobre a forma como os trabalhadores fizeram a reclamação dos aumentos salariais, quer sobre a forma como o fascismo açulou a matilha repressiva, o jornal Avante! de Novembro de 1941 termina assim:
«OS PATRÕES E O GOVERNO NÃO CONSEGUIRAM NEM CONSEGUIRÃO TERMINAR A LUTA DOS VALENTES OPERÁRIOS E OPERÁRIAS DA COVILHÃ.
OU OS SALÁRIOS SÃO ELEVADOS NUM BREVE ESPAÇO DE TEMPO OU OS TRABALHADORES VOLTARÃO A ERGUER-SE NA LUTA PELO SEU PÃO E O DOS SEUS FILHOS, na luta pelo melhoramento das suas condições de vida.
OPERÁRIOS DA COVILHÃ! VALENTES MULHERES DA COVILHÃ! JOVENS! Não descansai. ORGANIZAI A VOSSA LUTA. INSISTI PARA QUE O AUMENTO SEJA CONCEDIDO. Preparai-vos para novas jornadas se vos continuarem a mentir e a ludibriar. REFORÇAI O MOVIMENTO DE SOLIDARIEDAE PARA COM OS CAMARADAS PRESOS.
Que não seja vão o sacrifício dos que tombaram feridos ou jazem nas masmorras.
POVO TRABALHADOR DA COVILHÃ!
PRONTO PARA LUTAR E PARA VENCER!».
…....................................
Fontes:
Álvaro Cunhal, Obras Escolhidas, I volume, Edições Avante!, 2007;
60 Anos de Luta, Edições Avante!, 1982;
A Lã e a Neve, Ferreira de Castro;
Mário Dionísio, revista Vértice, volume IV, nº47, 1947.