Não passará
Nos últimos dias, particularmente depois das eleições legislativas, o Presidente da República entrou num frenético processo de incontinência oratória. Possuído por um entusiasmo esfuziante, o homem não se cala, desnudando-se, e ao seu pensamento mais profundo, cujas raízes se situam no antes do 25 de Abril.
As declarações feitas a propósito da formação do Governo, são disso exemplo – sendo certo que, mesmo quando diz que não tem nada a dizer, Cavaco está a dizer o que pensa...
Em todas estas exibições, ele fixa-se naquele que é o seu alvo do momento, o alvo a abater: a Constituição da República Portuguesa – a tal que ele, em solene acto de posse, jurou pela sua honra cumprir e fazer cumprir...
No dia 10 de Junho, foi o que foi. E não apenas pelo que o próprio disse, mas mais pelo que mandou a Barreto que dissesse - Barreto esse Cavaco com a imaginária aura de intelectual brilhante que a este irremediavelmente falta...
A reincidiência seguinte aconteceu na sessão de encerramento do Congresso Nacional das Misericórdias.
Aí, Cavaco sentiu-se como peixe na água: subiu-lhe à memória, avassalador, irreprimível, o pensamento dominante no tempo do regime fascista, no qual, a dada altura, a expressão «hoje, vamos fazer caridade» exemplificava o conceito de «serviço público» então vigente...
Por isso, ele disse no Congresso que «temos de reinventar o conceito de serviço público», retirando-lhe a «visão ideológica que os tempos tornaram obsoleta» - e, naturalmente, acrescentando-lhe a visão ideológica moderna do tempo de Salazar...
E embalado pela recordação desse tão saudoso tempo, explicou que a razão pela qual o relacionamento entre o Estado e as misericórdias não é o que ele, Cavaco, acha que deveria ser, deve-se a «essa quase obsessão de tudo sujeitar à tutela e à administração directa do Estado» - dando como exemplo das malvadezes do Estado a questão da «saúde», isto é, a barbaridade que é a existência do SNS...
E, num piscar de olhos à interessada assistência, enfatizou: «Os senhores sabem do que estou a falar».
Ó se sabem!
Aliás, sabemos todos. Por isso lhe dizemos que não passará.